domingo, 15 de dezembro de 2019

Fora do eixo (19/06/17)

Se eliminassem
todas as segundas,
as segundas seriam as terças.
O problema não é o dia,
mas, o mundo,
que insiste em girar
fora do eixo.

E, assim,
as pessoas sobrevivem
com a ilusão de viver.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

domingo, 17 de novembro de 2019

Trânsito (18/04/17)

Meu poema favorito deste livro:



Trânsito (18/04/17)

As pessoas desnudam
Sua real personalidade
No trânsito.
É por isso que ele flui mal
E há tantos esbarrões.

Dois egos não ocupam
O mesmo lugar no asfalto.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

domingo, 13 de outubro de 2019

Ser professor (18/04/17)

Ser professor é
Gritar para as paredes,
Lutar batalhas perdidas
E professar ininteligíveis fés.

Ser professor é
Se entregar de corpo
Ao desgaste físico
E de alma
À angústia infinita.

Ser professor é
Acreditar que é possível;
Perseverar no imperfeito,
Defender o indefinível,
Pôr à prova o improvável
E amar (mesmo sem querer).



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

domingo, 15 de setembro de 2019

Férias de mim mesmo (23/12/16)

Ocasionalmente,
Tiro férias do trabalho,
Tiro férias da família,
Tiro férias dos amigos;
Só não consigo tirar
Férias de mim mesmo –
Minha maior necessidade.

***

Às vezes, tento fugir de mim mesmo.
Mas, por mais que eu corra,
Sempre acabo me alcançando –
Malfadada relação doentia.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

sábado, 24 de agosto de 2019

Maldito gatinho!

Mais um conto de terror:

Maldito gatinho!

– Maldito gatinho! – reclamou Renata, mais uma vez, durante a madrugada. Já eram praticamente duas horas e ela sabia que esta era mais uma noite de sono perdida. Seria outro terrível dia de trabalho, em que se pareceria mais com uma zumbi do que com uma mulher.

Há dias que a professora não podia dormir. Um gato branco miava desesperadamente, todas as noites, na frente da sua casa. O estranho timbre assimilava-se mais ao choro de uma criança do que a um miado. Sem falar do arranhar da porta, que completava a sinfonia infernal e que, certamente, comprometeria bastante o seu frágil orçamento mensal, devido ao reparo a ser solicitado pelo proprietário do imóvel.

Não fazia muito tempo que Renata voltara a dormir bem novamente. Passara meses quase que em claro, por conta das lembranças com o seu filho, falecido há um ano. Ambos sofreram um acidente de carro, quando moravam em uma metrópole. Era um dia útil qualquer. A moça tinha saído do trabalho, juntamente com o seu menino Régis, de sete anos, que estudava na mesma escola em que ela lecionava. Então, na pressa de chegar em casa, a mãe encarnou o seu lado piloto de provas e voou pelo confuso trânsito da grande cidade, até que perdeu o controle do automóvel, o qual capotou várias vezes, esparramando o seu conteúdo na movimentada via, feito um animal esmagado, prestes a virar carniça.

No hospital, entrou em um processo letárgico. Recobrando a lucidez, deu início a uma recuperação lenta e difícil.

Ao retomar a consciência de tudo o que havia acontecido, em um apartamento que já não podia chamar de “lar”, Renata, avulsa há algum tempo de relacionamentos amorosos e familiares, optou por morar no interior, em uma casa bem isolada. A natureza que a ajudasse a exorcizar os seus demônios! Inclusive porque as pessoas só conseguiam aborrecê-la ainda mais.

Fechada em seus problemas, nem cogitava tentar resolver os problemas do gatinho. Quanto mais a criatura miava o seu suplicante lamento, mais Renata pensava no seu filho. E vinha a culpa, vinha o cansaço, vinha o estresse – tudo isso acumulado no seu corpo, na sua mente, no seu coração em frangalhos.

Para garantir a sua sobrevivência, a professora tinha conseguido um contrato em uma escola particular, um emprego bastante instável, que exigia muita concentração e interminável dedicação de sua parte. Sendo assim, tinha que evitar ao máximo novas perturbações – o que não vinha ocorrendo.

Passados alguns meses de trabalho, sabia que não estava agradando a coordenadora pedagógica Marcela. Podia sentir isso! Todas as semanas era chamada à sala desta, onde era interrogada a respeito de suas condições psicológica e emocional. “Os alunos”, relatava Marcela, “perguntam seguidamente o que leva a profe Renata a estar sempre triste e distante”. E essas conversas normalmente se encerravam com promessas vagas de “vou tentar melhorar”.

Até que um dia, sem conseguir mais sustentar a complicada situação, Marcela convocou Renata para uma reunião com a direção da instituição. Na ocasião, as integrantes da equipe diretiva afirmaram que não poderiam mantê-la no corpo docente. Segundo elas, a profissional estava deixando a desejar nos resultados, além do que não tinha procurado uma ajuda mais aprimorada para tentar resolver os seus problemas particulares; não tinha buscado pessoas especializadas, cujos tratamentos e prescrições talvez obtivessem o sucesso esperado.

Ao ouvir esse tipo de coisa, Renata saiu correndo da sala de reuniões. Contudo, antes de partir para casa, passou em um antiquado mercadinho, no qual comprou uma garrafa da bebida alcoólica mais forte e braba que o precário estabelecimento comercial podia oferecer aos seus poucos clientes.

No sofá de sua sala, derrotou o inebriante líquido, juntamente com as lágrimas que teimavam em brotar de seu exausto olhar.

Já era noite. E, como sempre, surgiu o pequeno e alvo animal, emitindo seu incômodo som de forma insuportável. De todas, Renata achava, essa era a oportunidade em que o gato mais se mostrava suplicante e desesperado. A embrutecida mulher, então, agarrou um machado destinado ao corte de lenha e que, por precaução, mantinha dentro da residência. Ela não mais aguentaria aquelas lamúrias do além! Aliás, até culpava o maldito gatinho por sua mais recente desgraça. Por isso, e para descontar a raiva angariada no infeliz dia, abriu a porta, vislumbrou o felino, desferiu um golpe violento com a pesada ferramenta.

E o animalzinho não tiraria nunca mais o seu sono...

Na sequência, despencou sob o sofá mesmo e dormiu. Dormiu como há tempos não dormia – não sem antes expurgar de suas entranhas o líquido diabólico e o nojo causado pela horrível atitude tomada há pouco.

Ao despertar, já na tarde do dia subsequente, sentiu uma sede insaciável. Cambaleante, foi à cozinha em busca de água. E, sob a pia, encontrou o seguinte bilhete: “Mamãe, por que você não abriu a porta para mim? Eu era aquele gatinho, mas não tinha como avisá-la. Perdão, mamãe! E eu também a perdoarei por ter tirado a minha vida mais uma vez.”

Em choque, mais parecendo uma assombração do que um ser vivo, Renata segurou o bilhete bem perto do peito, saiu de casa exatamente como estava, sem nem mesmo notar o sumiço do cadáver do gatinho, e caminhou lentamente. Dirigiu-se até um penhasco que havia ali na redondeza e, de lá, atirou-se, para não mais fazer mal ao seu filho.

Quem sabe, talvez só Deus, poderia ela, dessa forma, unir-se ao garoto, em um local onde ninguém mais é machucado. Ou não. Poderia ser o contrário. Mas agora tudo já estava feito...

domingo, 11 de agosto de 2019

(Ir)Reverências & Referências (12/01/16)

Inspirado em Fernando Pessoa:



Ó, mar salgado,
Vasto horizonte,
Força imensurável.
Tu que mobilizas
Mundaréus de gente.
Tu que chamas os alegres
Para relaxarem um pouco.
Tu que chamas os tristes
Para relaxarem de vez.
Tu, hipnótica e calmante
Presença.
Quem me dera ser um peixe
Para descobrir os seus segredos
E fugir dos meus problemas.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

domingo, 14 de julho de 2019

O sol está lá (06/07/15)

Mais um inspirado no sol:



O sol está lá,
Ele sempre está lá,
Mesmo que anoiteça,
Chova ou tudo nuble –

Como se fosse Deus...



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

domingo, 16 de junho de 2019

Fá Sol Lá (29/04/15)

A bola de fogo
No horizonte
Queima o olho
Da indiferença.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

domingo, 19 de maio de 2019

Sobre o descaso (e as oportunidades) (27/04/15)

A porta dá
Chateantes batidinhas
Com o vento,
Implorando
Para ser fechada.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

sexta-feira, 29 de março de 2019

Catando Letrinhas

Esta foi mais uma boa ideia que tive para um possível romance, mas que, por conta da minha falta de paciência, acabou se tornando uma pequena narrativa, não tão interessante quanto surgia em minha mente:

Catando Letrinhas

01- O encontro

Amanhecia. O professor levou o lixo para fora. Do outro lado da rua, dormia na calçada um mendigo.

– Não sou tão pobre quanto o mendigo, mas sinto-me tão miserável quanto ele. – pensou o professor – Esse mendigo pode não ter tido qualquer oportunidade. Eu, por outro lado, poderia ter escolhido outra coisa. E escolhi a licenciatura, para viver uma vida de agruras.

02- O desprezo

Nem bem se virara, o professor ouviu uma voz:

– Me ajuda, meu! – emitia, com bastante dificuldade, o mendigo.

Atravessando a rua, ele chegou até o seu companheiro de miséria. Auxiliou-o a se levantar e esse lhe falou:

– Valeu, meu chapa! – exalando um odor asqueroso de cachaça – Se puder me ver uns trocadinhos, agradeço também.

– Trocadinhos não tenho nem para mim! – vociferou o professor – Agora segue o teu rumo, cara!

– O que tu faz da vida que está tão quebrado, irmão? – questionou o andarilho.

– Sou uma droga de um professor e nado contra correnteza todo o santo dia, num país em que a minha classe é tratada como penitente, como inimiga dessa ignorância tão querida pelos poderosos e pela mídia. – explicou o outro.

– Eu já fui como você... – lançou o mendigo.

– Um professor??? – indagou, surpreso.

– Não, um otário preocupado! – riu o andarilho.

– Saia já daqui! – ordenou o professor, com sua falsa autoridade.

E cada um foi para um lado, com a mente recheada de pensamentos e o coração, de amargura.

03- O professor


Quando pequeno, colecionava mapas e atlas. Não deixava de acompanhar uma Copa do Mundo de Futebol ou uma edição das Olimpíadas. Admirava as diferenças étnicas, culturais, raciais – só não entendia muito bem as disparidades sociais e econômicas.

Ao final do Ensino Médio, após alguns testes vocacionais, concluiu: seria um professor de Geografia. Ou melhor, seria O professor de Geografia!!!

Passou no vestibular, frequentou a maioria das aulas, fez todos os trabalhos, resolveu todas as provas, elaborou um Trabalho de Conclusão de Curso e participou de inúmeros eventos, sempre muito elogiado, em qualquer circunstância.

Depois de formado, apresentou-se ao mundo cheio de recomendações e de moral. Conseguiu um emprego temporário, até ser aprovado em um concorrido concurso estadual para uma vaga de professor. Entrou em completo êxtase!

Anos após, viu que a sala de aula não era bem assim. Em meio à burocracia inútil, aos alunos mal-educados, à falta de comprometimento de alguns colegas e ao ambiente degradante das escolas públicas, sobrava pouco tempo e pouco ânimo para tentar ensinar alguma coisa.

Solteiro, com a mesada que recebia, conseguia pagar o aluguel da quitinete, as controladíssimas contas, a comida de baixa qualidade, a prestação do Fusca e as despesas de algumas noitadas em que afogava a solidão. Enfim, uma vida digna para alguém que estuda tanto e exerce uma profissão tão importante para o desenvolvimento das pessoas, não é mesmo?

04- O mendigo

Quem pode descrever um homem invisível?

05- A biblioteca

Um novo dia amanhecia. O professor levou o lixo para fora. Do outro lado da rua, olhava para ele o mendigo.

– Bom dia! – disse-lhe o andarilho – Um minutinho, faz favor!?

– Bom dia. O que tu quer? – respondeu o outro.

– É que, revirando as sacolinhas de lixo, eu tenho achado um bocado de livros. Faz anos já! Tenho pilhas e mais pilhas no meu barraco. Aliás, não durmo na rua não. Só quando exagero na bebida. Construí um teto numa invasão.

– E o que eu posso fazer por ti? – perguntou o educador, um tanto perplexo com a situação.

– Eu tenho esses livros, acho até que dá para montar uma coleção, mas infelizmente, não há o que fazer com eles.

– Não estou interessado neles! No meu apartamento quase não caibo eu! – assegurou o professor.

-- Não quero dar nada a ninguém, não! É que eu não sei ler... –  afirmou o mendigo, envergonhado.

– Bah! Perdão, então. – pediu o interlocutor, mais envergonhado ainda.
Após um pequeno instante:

– Já que tu é professor, não poderia me ensinar? – esperançoso, tentou o farrapo.

– Sou professor de Geografia, não sou alfabetizador! – sentenciou.

– Garanto que tu consegue. O que tu sabe fazer, sabe passar adiante. – motivou o andarilho.

– Sendo assim, podemos fazer uma experiência. Eu não tenho nada a perder mesmo... Mas só se tu vier sóbrio! Gente bêbada não aprende nada. Sei disso porque tenho a “honra” de dar aulas para adolescentes que vêm embriagados à escola. – denunciou o mestre.

– Está certo! Combinado! Quando começamos? – indagou, empolgado, o mendigo.

– No próximo sábado, nesse mesmo horário. – marcou o professor.

06- As aulas

Amanhecia, chuvoso, o sábado. O professor levou o lixo para fora. Da calçada em frente ao prédio, olhava para ele o mendigo.

– Bom dia! – disse-lhe o andarilho.

– Bom dia. – retrucou o professor – Pode entrar. – fazendo um gesto para que o outro se encaminhasse prédio adentro, perante os olhares curiosos e reprovadores dos vizinhos transeuntes.

No apartamento, o educador encaminhou o mendigo até o banheiro, para que tomasse banho. Deu-lhe roupas surradas (mas limpas) e ofereceu-lhe um café da manhã simples (mas suficiente).

As aulas começaram e o mendigo teve muita dificuldade para aprender algo. Já tinha a idade avançada, havia bebido vários litros ao longo da vida e não possuía qualquer noção de letramento. O que  ajudava era a vontade que nunca lhe faltou.

Assim se sucederam os fins de semana, até que o mendigo soubesse o básico para conseguir desfrutar de seus livros.

07- O resultado

Depois da última aula, o professor quis conhecer os livros do amigo. Este, reticente, levou-o até o seu barraco.

A peça em que o mendigo morava era indescritível; digna dos mais tristes cenários que se testemunha pelo Brasil. Os livros, inúmeros livros, eram pessimamente conservados, porém, legíveis. E interessantíssimos!

Foi aí que surgiu uma ideia ao professor: no mês seguinte teriam início as suas férias. E se eles construíssem uma biblioteca para o pessoal da invasão? Afinal, os benefícios do conhecimento e da cultura deveriam ser proporcionados a todas as pessoas.

Desconfiado, o andarilho aceitou. E, durante o período descrito, os dois, com a ajuda de alguns companheiros, melhoraram a casa do mendigo e construíram, com materiais descartados de construções e demolições, uma pequena sala destinada à biblioteca. Ali, por fim, organizaram as obras literárias (assim como a vida de ambos).

08- O recomeço

A vida seguiu.

O mendigo parou de beber, começou a trabalhar em uma cooperativa de reciclagem e deu início a um relacionamento com uma colega de labuta. 

A biblioteca estava em pleno funcionamento e o seu principal leitor era o próprio andarilho, cujo cuidado com o recinto era comovente.

O professor, anteriormente em depressão, passou a valorizar a sua profissão, tornando-se, novamente, um educador motivado. Os alunos, consequentemente, começaram a adorar o professor de Geografia! “Ele dá aulas divertidas, interessantes e se importa com a gente”, explicavam os estudantes.

Os dois, juntamente com uma pequena quantia de senhoras voluntárias, mantinham e cuidavam da continuidade do seu projeto. Ele simbolizava aquilo que eles conseguiram fazer de melhor durante as suas vidas. Ali estavam os sonhos e a motivação de ambos. Ali estava a esperança de outros tantos.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Suzano, “Free Fire” e Bullying

Escolhas

Meu nome também é Guilherme, também nasci num 05 de julho e também sofri um bullying desesperador quando estava na escola.

No meu caso, como reação inconsciente, já que nunca levava desaforo para casa, devolvia violência com violência. Sempre levei a pior, mas nunca saí perdendo. Porque carregava alguns idiotas junto comigo para a direção.

Naquela época não existia o conceito de bullying. Violência era violência, seja física ou verbal. E todos eram culpados por ela. (Aliás, comemorei aliviado quando desenvolveram esse conceito e começaram a dar mais atenção ao problema – o que, infelizmente, não melhorou muito a situação, tendo em vista que não adianta dar nome aos bois e continuar promovendo churrascos, rodeios e touradas.)

Apesar de toda a angústia, o sofrimento e a revolta que carregava comigo, decidi remediar as minhas dores buscando força interior. Optei por ser o meu melhor amigo – além de me apoiar nos poucos amigos verdadeiros que tinha, os quais, mesmo sendo poucos, valiam a pena.

No Ensino Médio, já que eu fui alvo de bullying “somente” por todo o Ensino Fundamental, os meus principais opressores me pediram perdão. Comecei a desabafar através da arte, o que me aliviou muito. E, posteriormente, me tornei professor, para fazer alguma coisa por outras crianças, uma vez que todos têm que passar pela escola.

Influência

Depois da fatalidade ocorrida em Suzano, estão culpando um jogo eletrônico por incutir a violência nos jovens. Querem até proibir o tal “Free Fire”. Aconteceu o mesmo há vários anos quando aquele maluco entrou no cinema e saiu atirando em quem surgisse diante dos seus olhos. Na ocasião, responsabilizaram a violência presente nos filmes e nos jogos eletrônicos, como “Matrix” e “Mortal Kombat”, pela má influência. Isso me chocou na época, uma vez que eu era (e ainda sou) fã das duas coisas. Porém, assim como eu, se todas as pessoas que assistiram ao “Matrix” e jogaram “Mortal Kombat” começassem a matar todo mundo, a humanidade já estaria extinta.

Não é por ter crescido assistindo aos filmes do Jason Voorhees, do Bruce Lee, do Jean Claude Van Damme que me tornaria um serial killer, um lutador de artes marciais ou um justiceiro. Além disso, jogar “Mortal Kombat” não me levou a sair batendo em todas as pessoas até a morte. Jogar “Grand Theft Auto” (o primeiro!) não me levou a me tornar um bandido. Assim como ninguém se torna o Pelé ou o Senna por jogar games de futebol e de corrida.

Como evitar o bullying

Depois de ter sido humilhado e atormentado com o bullying, e levando em conta a minha atual posição como professor, percebo que há muito pouco o que a sociedade de maneira geral pode fazer para diminuir esse problema.

Parece-me que praticar o bullying é, de certo modo, uma condição natural das crianças e dos adolescentes. Isso porque eles estão em uma fase de autoafirmação, em que precisam impressionar e se mostrar superiores para fazer parte do grupo majoritário da sua turma. Estão procurando o seu lugar no mundo. E identificam desde muito cedo que em nossa sociedade do consumo e da competitividade não há espaço para todos. E ninguém quer ser deixado de lado. Todos querem estar com os vitoriosos.

Nesse contexto, sempre veremos, geração após geração, aqueles que, assim como eu, não se encaixam nos padrões pré-determinados pelo contexto de cada época. Por exemplo, durante a minha infância, enquanto a maioria dos outros meninos era extrovertida, gostava de Mamonas Assassinas, Skank, Jota Quest e jogava bom futebol, eu era introvertido, gostava de Nirvana, Ramones, Sepultura e sempre era um dos últimos a serem escolhidos durante as aulas de Educação Física.

E a escola é muito cruel nesse aspecto. Em seu papel de laboratório social, essa instituição expõe seres humanos em formação a vários testes traumatizantes para a vida de cada indivíduo. Se Fulano não joga bem, é excluído. Se Beltrano não é extrovertido, é excluído. Se Sicrana não é visualmente bonita, é excluída. Se o Zé Ninguém não tira boas notas, é excluído. Se a Malfadada só faz perguntas idiotas na sala de aula, é excluída. Se o Vara Verde não pega nem gripe, é excluído. E segue o baile, com vários outros casos.

Enquanto professor, percebo diariamente o bullying acontecendo em sala de aula. E não é por falta de trabalhos sobre isso nas escolas. Não adianta as direções, os professores, os palestrantes falarem e agirem. Não adianta nem falar com os pais. Muitas vezes não adianta nem os pais falarem diretamente com os agressores! Alguns alunos simplesmente não conseguem se segurar, enquanto outros levam tudo na brincadeira. Porque, para eles, menosprezar o próximo é venerar e chamar a atenção para si mesmo. Ou para o próximo. Pois há casos em que os jovens debocham de quem eles querem chamar a atenção. Já observei em diversas situações meninos praticamente humilhando meninas em público e, no minuto seguinte, as mesmas meninas estarem agarradas com eles, morrendo de amores. Aí nasce o feminicídio.

Dicas de filmes

Há uma produção cinematográfica que costumo trabalhar com os alunos, cujo roteiro aborda a problemática das chacinas em escolas. Trata, ainda, sobre aquilo que normalmente está envolvido nesses casos: o bullying, causado pelo desrespeito às diferenças, o pré-julgamento, a falta de diálogo; e a motivação que leva o(s) atirador(es) a fazer(em) aquilo. É realmente uma obra excelente, que percorre várias temáticas e angústias próprias dos adolescentes.

O filme se chama “Home Room – A sobrevivente” e foi lançado no ano de 2002.

Além desse, há outros títulos que tratam a respeito do bullying nas escolas (e até nas universidades) com maestria: “Ela e os caras” (2007), “As excluídas” (2017), “Gatinhas e gatões” (1984).


***

Enfim, a violência não ocorre por influência daquilo que cada um de nós utiliza como fuga da realidade, mas sim por conta de tudo o que nos impede de viver e de ter paz, como a falta de respeito, a pressão, a humilhação, a injustiça.

domingo, 3 de março de 2019

Anjos de Neve

Escrevi o texto abaixo em 2005. Naquele momento, começando a estudar Letras, motivado a produzir literatura e querendo experimentar, tracei essas imperfeitas linhas com o objetivo de dar início a um romance.

O romance nunca saiu. Nem sairá. Mas, depois de quase quinze anos, segue o que rascunhei até hoje:



 ANJOS DE NEVE

Eu estava passando os olhos sobre o jornal. Percebi que as únicas notícias ruins da manhã eram relacionadas ao obituário.  

Durante um momento de distração, comecei a lembrar do planeta Terra dos meus dezoito anos de idade. Buscávamos um mundo melhor; mas, na realidade, estávamos matando-o para ganhar algum dinheiro a mais. Adiciona-se a isso o fato de que convivíamos em uma sociedade acomodada e ignorante.

A maioria dos países mantinha o presidencialismo, isto é, uma espécie de governo comandado por um só homem (fantoche), assessorado por diversos ventríloquos que, entra ano e sai ano, jamais sairiam do poder. A população entregava sua vida nas mãos das elites. E, embora trabalhassem rigorosamente quase todos os dias da semana, ninguém que não fosse da elite ou do interesse desta tinha o direito a enriquecer; ao contrário disso, permaneciam somente com seu direito de apodrecer.

Existiam as instituições religiosas, as quais eram responsáveis por manter a fé das pessoas. Sim. Por incrível que pareça, nós éramos divididos em grupos religiosos e doutrinados de acordo com cada religião.

Já estávamos no ano de 2005. Vivíamos de acordo com diversas leis, agrupadas em uma constituição. Elas eram responsáveis por estabelecer uma ordem ilusória, pois praticamente ninguém entendia que os legisladores buscavam a ordem, já que o cotidiano incitava ao caos. 

Seguindo sempre o tradicionalismo, através dos ensinamentos alheios, principalmente de nossos pais, aprendíamos a encorajar preconceitos, a nos individualizar, a querer sempre mais para nós mesmos, a buscar somente os atalhos para qualquer questão antes de enfrentá-la, a derrotar os “inimigos” através de guerras, porque eles eram pessoas diferentes, que julgávamos inferiores e más, entre outras coisas Assim, no decorrer dos anos, aprendíamos a ignorar valores que nos tornariam mais humanos.

Os níveis de escolaridade estavam subindo, apesar da precariedade social dificultar e atrasar a evolução. Com isso, a sociedade começou a duvidar dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), da fé e das doutrinas tradicionalistas. Corrigimos os nossos valores e começamos a estudar estratégias para manter a paz mundial.

Não sei explicar direito como tudo aconteceu. Sei apenas que evoluímos. Até que ponto?

Pouso o jornal sobre a mesa do restaurante, quando um Neowork vem me atender. Estamos agora no ano de 2055. Meu nome é Joseph Andersson, tenho sessenta e oito anos de idade e moro nos Estados Unidos da América.

A ciência evoluiu espantosamente. Além do mais, foi ela que causou o fim da Sociedade Antiga, por meio de uma ampla reestruturação social, política e econômica chamada de Neoway.

O mais importante nesse processo é que cientistas de todo o planeta se uniram e construíram os androides Neowork. Eles executam quase todos os trabalhos que antes eram destinados à população. No contexto atual, poucos seres humanos exercem alguma atividade. Quando o fazem, executam tarefas que desde os primórdios são consideradas exclusivas do homem. Seus empregos são relativos à educação, à saúde, às artes, aos esportes, aos mistérios... Contudo, no comércio e na indústria somente Neoworks são encontrados.

Vivemos num regime parlamentar. Os cientistas controlam o governo, as indústrias, o comércio e a agricultura. O lucro é distribuído igualmente para todos. Cada cidadão, a partir dos dezoito anos, recebe a sua mensalidade.

A mensalidade seria aquilo que chamávamos antigamente de salário. No entanto, agora recebemos uma espécie de mesada. Não temos que trocá-la por nada. Apenas a recebemos porque estamos vivos e necessitamos de recursos.

A escola permaneceu praticamente igual, embora tenha recebido importantes atualizações curriculares e metodológicas. Além disso, agora não há mais criança que não estude. Todos devem seguir os estudos até concluírem alguma formação superiora, para que possam receber a mensalidade até o fim da vida.

Essa é nossa única obrigação. Precisamos estudar até nos aprofundarmos em uma área do conhecimento escolhida por nós mesmos e, através dos conhecimentos adquiridos nessa fase, começamos a elaborar pesquisas que melhorem a qualidade de vida da sociedade e equilibrem a existência dos seres humanos com a do meio ambiente.

Em relação à saúde das pessoas... é um detalhe até engraçado. Eu sou da época em que todos eram conscientes sobre os riscos do excesso e da escassez. Todos tinham conhecimento a esse respeito, mas continuavam se excedendo ou, por medo de ultrapassar o ideal, tornavam a vida mais light. Hoje, com muito tempo de sobra, passamos a maior parte do dia cuidando do corpo e da mente. Os centros esportivos, as academias, as bibliotecas, os centros de pesquisa, as universidades, ou seja, tudo o que tem a ver com a evolução da raça humana e que melhore a motivação das pessoas é gratuito e de propriedade do governo.

Perdemos a fé, todavia mantivemos o nosso lado espiritual, cada um crendo naquilo que lhe faz bem ou naquilo que lhe faz compreender melhor a vida. Através desse novo estilo de vida, os religiosos viraram indivíduos livres e as instituições religiosas perderam seu poder, assim como os partidos políticos.

Após termos nos livrado de todas as doutrinas e de qualquer forma de submissão, foi decretado o primeiro Dia da Consciência, onde se deu o fim da antiga alienação. Essa data é comemorada no dia 29 de fevereiro, em todo o ano bissexto. Então, são feitas palestras e seminários globais, para que todo o mundo celebre e entenda com clareza a importância desse feriado.
***


Que nos seja permitido sonhar com um mundo melhor, onde não existam preconceitos e angústias, e os seres humanos tenham a possibilidade de apenas viver, em estado de plena harmonia e evolução.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Cotidiano

Escrevi esta narrativa em 2005, logo que ingressei no curso de Letras. Naquele momento, estava participando de uma oficina de produção textual. E o texto em questão foi uma das atividades propostas na oficina.

Cotidiano

Seu nome era Pedro, tinha 16 anos, pais “normais”, uma irmã de 14 anos chamada Leila e um pesadelo imaginário.

Todo dia, ele acordava, dava bom dia ao seu pai, à sua mãe, às paredes, mas não à sua irmã. Seguia rumo ao banheiro, onde retirava toda a sujeira que ele obtivera à noite. Quando acabava esse processo, descia as escadas de sua humilde casa de classe média alta e infeliz, para usufruir do banquete matinal que sua eficiente empregada lhes trazia.

O pai de Pedro, Dr. Vítor, era um homem em seus 45 anos, aparência apessoada, face firme e conservadora, advogado meia-boca e mal-pago. Sua mãe, Dona Célia, era uma dona de casa faz de conta, falsa e sorridente. Em seus 42 anos de vida, ela serviu apenas como modelo social de um instrumento alienável.

A irmã do nosso jovem, Leila, 14 anos, como já havíamos referenciado, tem uma curta e infeliz história. Até esta idade que lhe cai hoje sobre os ombros, foi uma legítima garota Barbie, que tudo pede, tudo ganha e nunca fica por fora de nenhuma novidade lançada no mundo do Shopping Center.  

O pesadelo de Pedro! Ele via sua vida passar, as garotas passarem, passando sobre elas, ascendendo em seu trono, mas ele não via alegria, naquele triste colégio particular em que cursava o Ensino Médio. Todas os dias, quando saía da escola sem esperar a sua irmã, encontrava dois rapazes negros sentados na calçada, que fumavam maconha e lhe miravam a vida. Ele simplesmente seguia, tomando o seu caminho real, direto para o seu castelo, sem refletir sobre o que havia sentido: o medo!

Então, dedurou os dois marginais para o Dr. Vítor: “Pai, tem dois negrões que ficam me encarando todos os dias na saída da escola!”

No outro dia, logo pela manhã, Pedro esbanjava um sorriso ardente, cumprimentou a todos, inclusive sua irmã. No fim da aula, seu pai o esperava. Pediu que lhe apontasse os garotos que o “ameaçavam”. Dr. Vítor foi ao encontro dos garotos, rufando palavras de desprezo, no intuito de alarmá-los sobre o seu poder. Os dois “secaram” friamente o senhor que ali estava e foram embora, enfurecidos e chapados. 

Último dia. Pedro repetiu o brilho anterior, com um sentimento de vitória. Abraçou o seu pai pela última vez...

Na volta da escola, encontrou os mesmos indivíduos. Eles se levantaram, indo furiosos na direção dele, gritando:

– Tu é muito baitola mano! Seu playboy veadinho! A gente não ia te fazer nada!

Dizendo isso, deram um chute na coxa de Pedro, que se encolheu chorando de medo. Ele, então, transformou toda a sua fraqueza em ódio social, pegando a faquinha de aço inox que passara a guardar na mochila por medida de “segurança”. Correu em direção aos alvos, no mesmo instante em que um deles se virava com um canivete. Pedro, que estava em alta velocidade, não conseguiu controlar seus movimentos e, num reflexo súbito, viu sua barriga sangrando, seu olhar embaralhando, sua vida, estacionando... Os dois garotos correram assustados, a polícia não apareceu, os jornais divulgaram, a sociedade se alienou e a família clamou por justiça. Cinco dias após a morte do jovem, duas viaturas prenderam os suspeitos. Fez-se justiça, fez-se o social, fez-se o poder.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

As músicas da minha infância

Eu sempre gostei muito de música! Muito mesmo! É uma daquelas coisas que fazem a minha vida valer a pena. 

Algumas das canções que mais curtia na infância me acompanham até hoje. São aquelas que não podem faltar no meu celular e que povoam o meu imaginário. São aquelas que moldaram aquilo que sou em termos de ser humano. São músicas das quais não consigo enjoar e que me dão uma sensação diferente, de extrema alegria, de transcendência. 

Todas elas são variações do plural rock and roll, mas que, juntamente com o meu amadurecimento ao longo dos anos, me permitiram encontrar outros sons, em outros estilos musicais, que mantêm a mesma indescritível atitude presente nelas.

Escolhi, então, as dez mais importantes dessa seleta coletânea, as quais listarei abaixo, assim como o videoclipe de cada uma (basta clicar no nome da música).











***

Durante a maior parte da minha infância, não tivemos TV a cabo, internet nem celular. O que fazíamos, meu irmão e eu, para ter acesso a músicas diferentes das que tocavam no rádio era pedir favores aos amigos que tinham acesso à emissora de televisão MTV (quando ela ainda prestava, até antes do ano 2000) para gravar em fitas de videocassete a maior quantidade possível de videoclipes legais. Então, assistíamos várias e várias vezes essas fitas, decorando até a sequência das canções presente nelas. 

Isso durou até os meus nove anos de idade, na ocasião em que conseguimos assinar uma TV a cabo - e que, na realidade, curtimos menos do que as fitas. Mas internet e celular (dos mais simples, como o que tenho ainda hoje) só fui ter acesso durante a minha adolescência - inclusive porque as pessoas só começaram a possuir computador (com ou  sem) internet e/ou celular em meados dos anos 90.

Hoje, sou sinceramente grato às oportunidades de ter tido conhecimento, cultura e educação durante a minha infância, para que se fundamentassem alicerces de qualidade no meu desenvolvimento. Pois, infelizmente, percebo que a maior parte das crianças e adolescentes da atualidade tem o mundo nas mãos, tem todas as possibilidades do mundo, porém usam de toda essa tecnologia para ouvir as mesmas músicas de baixa qualidade que tocam na maioria das emissoras de rádio de nosso país, além de não possuir aquela vontade de conhecer coisas diferentes que uma grande parcela das crianças e adolescentes tinham nos anos 90.

É que, de certa maneira, as facilidades, os atalhos, acomodam o ser humano, cujo cérebro vai atrofiando, assim como o restante do corpo.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Os poderes secretos de Nika

Capítulo 1

Nika era uma pequena guerreira. Não porque gostava de violência e de brutalidade. Muito pelo contrário! Mas porque lutava incontáveis batalhas, neste finito campo de batalhas chamado vida. 

Ela não era rica, não era loira como o mais inebriante ouro, nem possuía olhos claros como o céu em dias bons. Não se parecia em nada com as princesas mirins dos contos de fadas. Sua aparência estava mais para a das bruxas. E sua sorte também. Apesar disso, ela era linda! Pois era uma criança. E todas as crianças são lindas – mesmo aquelas com aparências desvalorizadas no mercado editorial.

Nika não morava em um castelo. Nem em um reino encantado. Ela morava em uma casa de brinquedo. Não porque sua casa era divertida nem nada assim. É porque era quase inacreditável que alguém pudesse morar em uma construção tão pequena, feita de restos de entulhos, desagradável nas cores, desagradável no desenho, desagradável no conforto (ou melhor, na falta dele), desagradável no espaço, desagradável na temperatura. Parecia uma brincadeira (ou piada) de mau gosto. E essa humilde (ou humilhante) residência ficava em um humilde (ou humilhante) local, nem um pouco mais agradável do que a sua casinha de brinquedo.

É aí que começavam os poderes secretos de Nika. Podiam ser chamados de poderes porque ajudavam-na a enfrentar as suas batalhas diárias. E podiam ser chamados de secretos porque somente ela sabia que os tinha. Eles funcionavam no seu âmago. Além disso, Nika não era dada a revelar os seus segredos. Pelo menos isso ela conseguia guardar para ela, somente ela!

O primeiro poder de Nika era saber suportar. Pois sabia como nenhuma outra menina de sua idade suportar o desgosto que aquele lugar trazia para a sua família. Ela também era capaz de suportar a ausência de um pai, a falta de comida e a inexistência de carinho dentro daquelas gélidas fronteiras.

A família de Nika era composta por sua mãe e três meios-irmãos. Meios-irmãos porque Nika era filha de um pai diferente dos outros três. Primeiro, sua mãe teve Nika. Mas, depois que seu pai fora vítima de uma bala perdida (se é que existam balas certeiras, já que atirar em alguém sempre é um ato perdido), surgiu um padrasto na vida de Nika. E, com ele, um após o outro, irmãos menores: duas meninas e um menino, que havia nascido no intervalo entre uma menina e outra.

O padrasto de Nika, mais um dentre tantos Josés, passava o dia fazendo bicos, com os bicos de várias garrafas de bebidas na sua boquinha de cemitério. Então, como a mãe de Nika, Dona Dolores, trabalhava como empregada doméstica numa moradia sim de contos de fadas, cabia à filha tentar cuidar dos três irmãos. E assim apresentamos mais um poder de Nika, o poder da superação. Pois qualquer criança que é obrigada a cuidar de outras crianças precisa se superar... e muito! Sem contar a superação da perda do pai, da inutilidade do padrasto e de outras novidades detestáveis na vida de Nika.

Quando não tinha que cuidar dos irmãos, Nika ia à escola. Isto é, na verdade ela ia à escola bem menos vezes do que deveria. E, nas vezes em que ia, não lhe ensinavam nada que lhe ajudasse a controlar e a acalmar os irmãos; nem a lidar com o medo de seu padrasto, nos momentos em que ele, bem bêbado, lhe encostava de maneira asquerosa; nem a sair de maneira rápida daquele lugar triste e opressor. Por isso, às vezes ela preferia não ir, mesmo que não precisasse cuidar dos menores. Nessas ocasiões, Nika ia até a cidade. A cidade de verdade! Aos lugares lembrados da cidade, não aos esquecidos! Àqueles locais onde há pessoas bonitas, e lojas bonitas, e ruas bonitas; e tudo isso lhe dava um nó na garganta. Está certo que, quando não ia à escola sem a permissão da mãe, esta ficava braba. (“Braba” mesmo, não “brava”. Porque tornar-se violento não pode ser, de forma alguma, sinônimo de “valentia”.) E, quando isso acontecia, Nika precisava demonstrar outra faceta do poder de suportar, o poder de suportar a dor. Mas valia a pena o sofrimento, pois só assim ela sabia que existia uma vida diferente, quem sabe melhor, onde o dinheiro dá um único poder às pessoas, o poder da compra, tão indispensável em nossa sociedade. E, para aqueles que não têm dinheiro, como Nika, o poder da compra parece ser o mais potente de todos. Nika imaginava que ele tornaria tudo agradável, tudo fácil; traria sorrisos e gargalhadas.

A esperança de dias melhores proporcionava um outro poder para Nika, o poder de seguir em frente. Pois nas novelas e nos filmes que passavam na TV ela via meninas se tornarem mulheres, e mulheres se tornarem esposas e mães. É claro que ela via tudo isso ao redor de sua casa de brinquedo também! Não necessariamente naquela ordem. Às vezes meninas se tornavam mães cedo demais. E nem sempre mães se tornavam esposas. É que na TV as mulheres se casavam com homens ricos, que transformavam meninas como Nika em princesas de verdade. E com ela seria assim, com certeza! Não iria se casar com homens como o seu padrasto, ou que tivessem um destino triste como o do seu pai. Com certeza aconteceria o melhor para ela! É para isso que ela rezava. E a reza lhe dava outro poder, a fé. A fé em si mesma, a fé no amanhã (que toda criança tem).

Desse modo caminhou a infância de Nika, com sonhos e poderes, mas também, em algumas situações, com pesadelos e impotência.

Capítulo 2

Os anos voaram e com eles surgiu um novo capítulo na vida de Nika. Ela se tornou moça depois de enfrentar milhares de indescritíveis batalhas e de aprender a usar uma diversidade de outros poderes diferentes. Esses poderes ensinaram muitas coisas a ela. Coisas que nem a escola nem ninguém poderiam tê-la ensinado. Coisas que se aprende sozinha! Nesse tempo, aprendeu a sobreviver. Aprendeu o poder de esquecer alguns dos acontecimentos ruins, o poder de ignorar batalhas pequenas demais e, infelizmente, como faz parte da existência de qualquer pessoa, o poder de se esquivar, para fugir de situações difíceis, embaraçosas ou perigosas.

Naquela época, Nika começara a trabalhar. E, como se dedicava, Nika cresceu no emprego. No hipermercado em que trabalhava, passara de empacotadora a caixa em alguns meses. Depois, com a espera de mais alguns anos, tornou-se fiscal.

No hipermercado, Nika havia conhecido Davi. Davi, que fazia de tudo um pouco dentro daquele castelo de consumo, não era bem aquele homem rico com quem Nika sonhara. Contudo, era bem diferente de seu padrasto. E, por compartilhar da fé no amanhã de Nika, também não teria o mesmo destino que seu pai.

Os dois iniciaram um longo e suado relacionamento. Com os poderes que ambos obtiveram ainda na infância, resistiriam a tudo. Nada, exatamente nada, seria problema para aqueles dois! Eles já tinham tudo planejado. Trabalhariam muito, economizariam mais ainda e, só depois de conseguir alugar um apartamento nos bons lugares da cidade, aqueles com lojas e pessoas bonitas, eles se casariam.

Porém, e nesta vida há sempre “poréns”, num dia qualquer, quando Davi estava à procura do presente perfeito para oferecer a Nika pelo aniversário de namoro dos dois, alguns policiais confundiram o rapaz com outro, mais um dos vários autores de pequenos delitos. Davi não reagira à abordagem da maneira que era esperada pelos homens fardados, e, numa tentativa de fuga desesperada, o tiro saiu pela culatra. E a bala acertou Davi.

Nika, por sua vez, perdeu todos os seus poderes. E tornou-se, depois de cascatas de lágrimas, uma pessoa comum. Trabalhava pelo pão de cada dia, sem pensar em nada além. Colocou apenas um único objetivo para a sua vida: se não tivesse mais ninguém em sua vida, diminuiria bastante a quantia de desgostos. Não teria mais que tomar conta de ninguém, nem teria com quem se decepcionar. Então, só seguiria só.

Após anos, solitária na lida, conseguiu alugar uma quitinete próxima ao hipermercado. Mobiliou-a como conseguiu, o que, de qualquer maneira, ficou bem melhor do que a antiga casa de brinquedo que dividia com a sua família.

Assim, prosseguia a sua organizada vida até que o destino lhe surpreendeu. Um novo vizinho, um jovem vizinho, havia aparecido no prédio em que Nika morava. E, desde o primeiro momento em que se encontraram, ocorreu um sincero sorriso em ambos, por dentro e por fora, um como consequência do outro. Daquele segundo em diante os dois perceberam que a vida entre os dois seria melhor. Apenas sabiam, sem saber como!

Nos momentos em que um universo se deparava com o outro pelos corredores, Natanael conversava com Nika. E a cada dia que se passava ela tinha mais certeza de que o rapaz era um presente do destino a ela, que já havia passado por tanta coisa, inclusive pela perda de seus poderes.

Natanael a redimiu. Natanael redimiu a sua vida. E a partir de então (quase) tudo deu certo – porque dar tudo certo é milagre, e isso raramente acontece na vida de pessoas comuns, mesmo que elas sejam extremamente poderosas, como Nika, Natanael, Davi e tantos outros heróis anônimos, que se salvam e nos salvam todos os dias.