domingo, 3 de março de 2019

Anjos de Neve

Escrevi o texto abaixo em 2005. Naquele momento, começando a estudar Letras, motivado a produzir literatura e querendo experimentar, tracei essas imperfeitas linhas com o objetivo de dar início a um romance.

O romance nunca saiu. Nem sairá. Mas, depois de quase quinze anos, segue o que rascunhei até hoje:



 ANJOS DE NEVE

Eu estava passando os olhos sobre o jornal. Percebi que as únicas notícias ruins da manhã eram relacionadas ao obituário.  

Durante um momento de distração, comecei a lembrar do planeta Terra dos meus dezoito anos de idade. Buscávamos um mundo melhor; mas, na realidade, estávamos matando-o para ganhar algum dinheiro a mais. Adiciona-se a isso o fato de que convivíamos em uma sociedade acomodada e ignorante.

A maioria dos países mantinha o presidencialismo, isto é, uma espécie de governo comandado por um só homem (fantoche), assessorado por diversos ventríloquos que, entra ano e sai ano, jamais sairiam do poder. A população entregava sua vida nas mãos das elites. E, embora trabalhassem rigorosamente quase todos os dias da semana, ninguém que não fosse da elite ou do interesse desta tinha o direito a enriquecer; ao contrário disso, permaneciam somente com seu direito de apodrecer.

Existiam as instituições religiosas, as quais eram responsáveis por manter a fé das pessoas. Sim. Por incrível que pareça, nós éramos divididos em grupos religiosos e doutrinados de acordo com cada religião.

Já estávamos no ano de 2005. Vivíamos de acordo com diversas leis, agrupadas em uma constituição. Elas eram responsáveis por estabelecer uma ordem ilusória, pois praticamente ninguém entendia que os legisladores buscavam a ordem, já que o cotidiano incitava ao caos. 

Seguindo sempre o tradicionalismo, através dos ensinamentos alheios, principalmente de nossos pais, aprendíamos a encorajar preconceitos, a nos individualizar, a querer sempre mais para nós mesmos, a buscar somente os atalhos para qualquer questão antes de enfrentá-la, a derrotar os “inimigos” através de guerras, porque eles eram pessoas diferentes, que julgávamos inferiores e más, entre outras coisas Assim, no decorrer dos anos, aprendíamos a ignorar valores que nos tornariam mais humanos.

Os níveis de escolaridade estavam subindo, apesar da precariedade social dificultar e atrasar a evolução. Com isso, a sociedade começou a duvidar dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), da fé e das doutrinas tradicionalistas. Corrigimos os nossos valores e começamos a estudar estratégias para manter a paz mundial.

Não sei explicar direito como tudo aconteceu. Sei apenas que evoluímos. Até que ponto?

Pouso o jornal sobre a mesa do restaurante, quando um Neowork vem me atender. Estamos agora no ano de 2055. Meu nome é Joseph Andersson, tenho sessenta e oito anos de idade e moro nos Estados Unidos da América.

A ciência evoluiu espantosamente. Além do mais, foi ela que causou o fim da Sociedade Antiga, por meio de uma ampla reestruturação social, política e econômica chamada de Neoway.

O mais importante nesse processo é que cientistas de todo o planeta se uniram e construíram os androides Neowork. Eles executam quase todos os trabalhos que antes eram destinados à população. No contexto atual, poucos seres humanos exercem alguma atividade. Quando o fazem, executam tarefas que desde os primórdios são consideradas exclusivas do homem. Seus empregos são relativos à educação, à saúde, às artes, aos esportes, aos mistérios... Contudo, no comércio e na indústria somente Neoworks são encontrados.

Vivemos num regime parlamentar. Os cientistas controlam o governo, as indústrias, o comércio e a agricultura. O lucro é distribuído igualmente para todos. Cada cidadão, a partir dos dezoito anos, recebe a sua mensalidade.

A mensalidade seria aquilo que chamávamos antigamente de salário. No entanto, agora recebemos uma espécie de mesada. Não temos que trocá-la por nada. Apenas a recebemos porque estamos vivos e necessitamos de recursos.

A escola permaneceu praticamente igual, embora tenha recebido importantes atualizações curriculares e metodológicas. Além disso, agora não há mais criança que não estude. Todos devem seguir os estudos até concluírem alguma formação superiora, para que possam receber a mensalidade até o fim da vida.

Essa é nossa única obrigação. Precisamos estudar até nos aprofundarmos em uma área do conhecimento escolhida por nós mesmos e, através dos conhecimentos adquiridos nessa fase, começamos a elaborar pesquisas que melhorem a qualidade de vida da sociedade e equilibrem a existência dos seres humanos com a do meio ambiente.

Em relação à saúde das pessoas... é um detalhe até engraçado. Eu sou da época em que todos eram conscientes sobre os riscos do excesso e da escassez. Todos tinham conhecimento a esse respeito, mas continuavam se excedendo ou, por medo de ultrapassar o ideal, tornavam a vida mais light. Hoje, com muito tempo de sobra, passamos a maior parte do dia cuidando do corpo e da mente. Os centros esportivos, as academias, as bibliotecas, os centros de pesquisa, as universidades, ou seja, tudo o que tem a ver com a evolução da raça humana e que melhore a motivação das pessoas é gratuito e de propriedade do governo.

Perdemos a fé, todavia mantivemos o nosso lado espiritual, cada um crendo naquilo que lhe faz bem ou naquilo que lhe faz compreender melhor a vida. Através desse novo estilo de vida, os religiosos viraram indivíduos livres e as instituições religiosas perderam seu poder, assim como os partidos políticos.

Após termos nos livrado de todas as doutrinas e de qualquer forma de submissão, foi decretado o primeiro Dia da Consciência, onde se deu o fim da antiga alienação. Essa data é comemorada no dia 29 de fevereiro, em todo o ano bissexto. Então, são feitas palestras e seminários globais, para que todo o mundo celebre e entenda com clareza a importância desse feriado.
***


Que nos seja permitido sonhar com um mundo melhor, onde não existam preconceitos e angústias, e os seres humanos tenham a possibilidade de apenas viver, em estado de plena harmonia e evolução.

Nenhum comentário:

Postar um comentário