domingo, 19 de maio de 2019

Sobre o descaso (e as oportunidades) (27/04/15)

A porta dá
Chateantes batidinhas
Com o vento,
Implorando
Para ser fechada.



(MENDEL, G. M. Doravante. Erechim-RS: AllPrint Varella, 2019.)

sexta-feira, 29 de março de 2019

Catando Letrinhas

Esta foi mais uma boa ideia que tive para um possível romance, mas que, por conta da minha falta de paciência, acabou se tornando uma pequena narrativa, não tão interessante quanto surgia em minha mente:

Catando Letrinhas

01- O encontro

Amanhecia. O professor levou o lixo para fora. Do outro lado da rua, dormia na calçada um mendigo.

– Não sou tão pobre quanto o mendigo, mas sinto-me tão miserável quanto ele. – pensou o professor – Esse mendigo pode não ter tido qualquer oportunidade. Eu, por outro lado, poderia ter escolhido outra coisa. E escolhi a licenciatura, para viver uma vida de agruras.

02- O desprezo

Nem bem se virara, o professor ouviu uma voz:

– Me ajuda, meu! – emitia, com bastante dificuldade, o mendigo.

Atravessando a rua, ele chegou até o seu companheiro de miséria. Auxiliou-o a se levantar e esse lhe falou:

– Valeu, meu chapa! – exalando um odor asqueroso de cachaça – Se puder me ver uns trocadinhos, agradeço também.

– Trocadinhos não tenho nem para mim! – vociferou o professor – Agora segue o teu rumo, cara!

– O que tu faz da vida que está tão quebrado, irmão? – questionou o andarilho.

– Sou uma droga de um professor e nado contra correnteza todo o santo dia, num país em que a minha classe é tratada como penitente, como inimiga dessa ignorância tão querida pelos poderosos e pela mídia. – explicou o outro.

– Eu já fui como você... – lançou o mendigo.

– Um professor??? – indagou, surpreso.

– Não, um otário preocupado! – riu o andarilho.

– Saia já daqui! – ordenou o professor, com sua falsa autoridade.

E cada um foi para um lado, com a mente recheada de pensamentos e o coração, de amargura.

03- O professor


Quando pequeno, colecionava mapas e atlas. Não deixava de acompanhar uma Copa do Mundo de Futebol ou uma edição das Olimpíadas. Admirava as diferenças étnicas, culturais, raciais – só não entendia muito bem as disparidades sociais e econômicas.

Ao final do Ensino Médio, após alguns testes vocacionais, concluiu: seria um professor de Geografia. Ou melhor, seria O professor de Geografia!!!

Passou no vestibular, frequentou a maioria das aulas, fez todos os trabalhos, resolveu todas as provas, elaborou um Trabalho de Conclusão de Curso e participou de inúmeros eventos, sempre muito elogiado, em qualquer circunstância.

Depois de formado, apresentou-se ao mundo cheio de recomendações e de moral. Conseguiu um emprego temporário, até ser aprovado em um concorrido concurso estadual para uma vaga de professor. Entrou em completo êxtase!

Anos após, viu que a sala de aula não era bem assim. Em meio à burocracia inútil, aos alunos mal-educados, à falta de comprometimento de alguns colegas e ao ambiente degradante das escolas públicas, sobrava pouco tempo e pouco ânimo para tentar ensinar alguma coisa.

Solteiro, com a mesada que recebia, conseguia pagar o aluguel da quitinete, as controladíssimas contas, a comida de baixa qualidade, a prestação do Fusca e as despesas de algumas noitadas em que afogava a solidão. Enfim, uma vida digna para alguém que estuda tanto e exerce uma profissão tão importante para o desenvolvimento das pessoas, não é mesmo?

04- O mendigo

Quem pode descrever um homem invisível?

05- A biblioteca

Um novo dia amanhecia. O professor levou o lixo para fora. Do outro lado da rua, olhava para ele o mendigo.

– Bom dia! – disse-lhe o andarilho – Um minutinho, faz favor!?

– Bom dia. O que tu quer? – respondeu o outro.

– É que, revirando as sacolinhas de lixo, eu tenho achado um bocado de livros. Faz anos já! Tenho pilhas e mais pilhas no meu barraco. Aliás, não durmo na rua não. Só quando exagero na bebida. Construí um teto numa invasão.

– E o que eu posso fazer por ti? – perguntou o educador, um tanto perplexo com a situação.

– Eu tenho esses livros, acho até que dá para montar uma coleção, mas infelizmente, não há o que fazer com eles.

– Não estou interessado neles! No meu apartamento quase não caibo eu! – assegurou o professor.

-- Não quero dar nada a ninguém, não! É que eu não sei ler... –  afirmou o mendigo, envergonhado.

– Bah! Perdão, então. – pediu o interlocutor, mais envergonhado ainda.
Após um pequeno instante:

– Já que tu é professor, não poderia me ensinar? – esperançoso, tentou o farrapo.

– Sou professor de Geografia, não sou alfabetizador! – sentenciou.

– Garanto que tu consegue. O que tu sabe fazer, sabe passar adiante. – motivou o andarilho.

– Sendo assim, podemos fazer uma experiência. Eu não tenho nada a perder mesmo... Mas só se tu vier sóbrio! Gente bêbada não aprende nada. Sei disso porque tenho a “honra” de dar aulas para adolescentes que vêm embriagados à escola. – denunciou o mestre.

– Está certo! Combinado! Quando começamos? – indagou, empolgado, o mendigo.

– No próximo sábado, nesse mesmo horário. – marcou o professor.

06- As aulas

Amanhecia, chuvoso, o sábado. O professor levou o lixo para fora. Da calçada em frente ao prédio, olhava para ele o mendigo.

– Bom dia! – disse-lhe o andarilho.

– Bom dia. – retrucou o professor – Pode entrar. – fazendo um gesto para que o outro se encaminhasse prédio adentro, perante os olhares curiosos e reprovadores dos vizinhos transeuntes.

No apartamento, o educador encaminhou o mendigo até o banheiro, para que tomasse banho. Deu-lhe roupas surradas (mas limpas) e ofereceu-lhe um café da manhã simples (mas suficiente).

As aulas começaram e o mendigo teve muita dificuldade para aprender algo. Já tinha a idade avançada, havia bebido vários litros ao longo da vida e não possuía qualquer noção de letramento. O que  ajudava era a vontade que nunca lhe faltou.

Assim se sucederam os fins de semana, até que o mendigo soubesse o básico para conseguir desfrutar de seus livros.

07- O resultado

Depois da última aula, o professor quis conhecer os livros do amigo. Este, reticente, levou-o até o seu barraco.

A peça em que o mendigo morava era indescritível; digna dos mais tristes cenários que se testemunha pelo Brasil. Os livros, inúmeros livros, eram pessimamente conservados, porém, legíveis. E interessantíssimos!

Foi aí que surgiu uma ideia ao professor: no mês seguinte teriam início as suas férias. E se eles construíssem uma biblioteca para o pessoal da invasão? Afinal, os benefícios do conhecimento e da cultura deveriam ser proporcionados a todas as pessoas.

Desconfiado, o andarilho aceitou. E, durante o período descrito, os dois, com a ajuda de alguns companheiros, melhoraram a casa do mendigo e construíram, com materiais descartados de construções e demolições, uma pequena sala destinada à biblioteca. Ali, por fim, organizaram as obras literárias (assim como a vida de ambos).

08- O recomeço

A vida seguiu.

O mendigo parou de beber, começou a trabalhar em uma cooperativa de reciclagem e deu início a um relacionamento com uma colega de labuta. 

A biblioteca estava em pleno funcionamento e o seu principal leitor era o próprio andarilho, cujo cuidado com o recinto era comovente.

O professor, anteriormente em depressão, passou a valorizar a sua profissão, tornando-se, novamente, um educador motivado. Os alunos, consequentemente, começaram a adorar o professor de Geografia! “Ele dá aulas divertidas, interessantes e se importa com a gente”, explicavam os estudantes.

Os dois, juntamente com uma pequena quantia de senhoras voluntárias, mantinham e cuidavam da continuidade do seu projeto. Ele simbolizava aquilo que eles conseguiram fazer de melhor durante as suas vidas. Ali estavam os sonhos e a motivação de ambos. Ali estava a esperança de outros tantos.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Suzano, “Free Fire” e Bullying

Escolhas

Meu nome também é Guilherme, também nasci num 05 de julho e também sofri um bullying desesperador quando estava na escola.

No meu caso, como reação inconsciente, já que nunca levava desaforo para casa, devolvia violência com violência. Sempre levei a pior, mas nunca saí perdendo. Porque carregava alguns idiotas junto comigo para a direção.

Naquela época não existia o conceito de bullying. Violência era violência, seja física ou verbal. E todos eram culpados por ela. (Aliás, comemorei aliviado quando desenvolveram esse conceito e começaram a dar mais atenção ao problema – o que, infelizmente, não melhorou muito a situação, tendo em vista que não adianta dar nome aos bois e continuar promovendo churrascos, rodeios e touradas.)

Apesar de toda a angústia, o sofrimento e a revolta que carregava comigo, decidi remediar as minhas dores buscando força interior. Optei por ser o meu melhor amigo – além de me apoiar nos poucos amigos verdadeiros que tinha, os quais, mesmo sendo poucos, valiam a pena.

No Ensino Médio, já que eu fui alvo de bullying “somente” por todo o Ensino Fundamental, os meus principais opressores me pediram perdão. Comecei a desabafar através da arte, o que me aliviou muito. E, posteriormente, me tornei professor, para fazer alguma coisa por outras crianças, uma vez que todos têm que passar pela escola.

Influência

Depois da fatalidade ocorrida em Suzano, estão culpando um jogo eletrônico por incutir a violência nos jovens. Querem até proibir o tal “Free Fire”. Aconteceu o mesmo há vários anos quando aquele maluco entrou no cinema e saiu atirando em quem surgisse diante dos seus olhos. Na ocasião, responsabilizaram a violência presente nos filmes e nos jogos eletrônicos, como “Matrix” e “Mortal Kombat”, pela má influência. Isso me chocou na época, uma vez que eu era (e ainda sou) fã das duas coisas. Porém, assim como eu, se todas as pessoas que assistiram ao “Matrix” e jogaram “Mortal Kombat” começassem a matar todo mundo, a humanidade já estaria extinta.

Não é por ter crescido assistindo aos filmes do Jason Voorhees, do Bruce Lee, do Jean Claude Van Damme que me tornaria um serial killer, um lutador de artes marciais ou um justiceiro. Além disso, jogar “Mortal Kombat” não me levou a sair batendo em todas as pessoas até a morte. Jogar “Grand Theft Auto” (o primeiro!) não me levou a me tornar um bandido. Assim como ninguém se torna o Pelé ou o Senna por jogar games de futebol e de corrida.

Como evitar o bullying

Depois de ter sido humilhado e atormentado com o bullying, e levando em conta a minha atual posição como professor, percebo que há muito pouco o que a sociedade de maneira geral pode fazer para diminuir esse problema.

Parece-me que praticar o bullying é, de certo modo, uma condição natural das crianças e dos adolescentes. Isso porque eles estão em uma fase de autoafirmação, em que precisam impressionar e se mostrar superiores para fazer parte do grupo majoritário da sua turma. Estão procurando o seu lugar no mundo. E identificam desde muito cedo que em nossa sociedade do consumo e da competitividade não há espaço para todos. E ninguém quer ser deixado de lado. Todos querem estar com os vitoriosos.

Nesse contexto, sempre veremos, geração após geração, aqueles que, assim como eu, não se encaixam nos padrões pré-determinados pelo contexto de cada época. Por exemplo, durante a minha infância, enquanto a maioria dos outros meninos era extrovertida, gostava de Mamonas Assassinas, Skank, Jota Quest e jogava bom futebol, eu era introvertido, gostava de Nirvana, Ramones, Sepultura e sempre era um dos últimos a serem escolhidos durante as aulas de Educação Física.

E a escola é muito cruel nesse aspecto. Em seu papel de laboratório social, essa instituição expõe seres humanos em formação a vários testes traumatizantes para a vida de cada indivíduo. Se Fulano não joga bem, é excluído. Se Beltrano não é extrovertido, é excluído. Se Sicrana não é visualmente bonita, é excluída. Se o Zé Ninguém não tira boas notas, é excluído. Se a Malfadada só faz perguntas idiotas na sala de aula, é excluída. Se o Vara Verde não pega nem gripe, é excluído. E segue o baile, com vários outros casos.

Enquanto professor, percebo diariamente o bullying acontecendo em sala de aula. E não é por falta de trabalhos sobre isso nas escolas. Não adianta as direções, os professores, os palestrantes falarem e agirem. Não adianta nem falar com os pais. Muitas vezes não adianta nem os pais falarem diretamente com os agressores! Alguns alunos simplesmente não conseguem se segurar, enquanto outros levam tudo na brincadeira. Porque, para eles, menosprezar o próximo é venerar e chamar a atenção para si mesmo. Ou para o próximo. Pois há casos em que os jovens debocham de quem eles querem chamar a atenção. Já observei em diversas situações meninos praticamente humilhando meninas em público e, no minuto seguinte, as mesmas meninas estarem agarradas com eles, morrendo de amores. Aí nasce o feminicídio.

Dicas de filmes

Há uma produção cinematográfica que costumo trabalhar com os alunos, cujo roteiro aborda a problemática das chacinas em escolas. Trata, ainda, sobre aquilo que normalmente está envolvido nesses casos: o bullying, causado pelo desrespeito às diferenças, o pré-julgamento, a falta de diálogo; e a motivação que leva o(s) atirador(es) a fazer(em) aquilo. É realmente uma obra excelente, que percorre várias temáticas e angústias próprias dos adolescentes.

O filme se chama “Home Room – A sobrevivente” e foi lançado no ano de 2002.

Além desse, há outros títulos que tratam a respeito do bullying nas escolas (e até nas universidades) com maestria: “Ela e os caras” (2007), “As excluídas” (2017), “Gatinhas e gatões” (1984).


***

Enfim, a violência não ocorre por influência daquilo que cada um de nós utiliza como fuga da realidade, mas sim por conta de tudo o que nos impede de viver e de ter paz, como a falta de respeito, a pressão, a humilhação, a injustiça.

domingo, 3 de março de 2019

Anjos de Neve

Escrevi o texto abaixo em 2005. Naquele momento, começando a estudar Letras, motivado a produzir literatura e querendo experimentar, tracei essas imperfeitas linhas com o objetivo de dar início a um romance.

O romance nunca saiu. Nem sairá. Mas, depois de quase quinze anos, segue o que rascunhei até hoje:



 ANJOS DE NEVE

Eu estava passando os olhos sobre o jornal. Percebi que as únicas notícias ruins da manhã eram relacionadas ao obituário.  

Durante um momento de distração, comecei a lembrar do planeta Terra dos meus dezoito anos de idade. Buscávamos um mundo melhor; mas, na realidade, estávamos matando-o para ganhar algum dinheiro a mais. Adiciona-se a isso o fato de que convivíamos em uma sociedade acomodada e ignorante.

A maioria dos países mantinha o presidencialismo, isto é, uma espécie de governo comandado por um só homem (fantoche), assessorado por diversos ventríloquos que, entra ano e sai ano, jamais sairiam do poder. A população entregava sua vida nas mãos das elites. E, embora trabalhassem rigorosamente quase todos os dias da semana, ninguém que não fosse da elite ou do interesse desta tinha o direito a enriquecer; ao contrário disso, permaneciam somente com seu direito de apodrecer.

Existiam as instituições religiosas, as quais eram responsáveis por manter a fé das pessoas. Sim. Por incrível que pareça, nós éramos divididos em grupos religiosos e doutrinados de acordo com cada religião.

Já estávamos no ano de 2005. Vivíamos de acordo com diversas leis, agrupadas em uma constituição. Elas eram responsáveis por estabelecer uma ordem ilusória, pois praticamente ninguém entendia que os legisladores buscavam a ordem, já que o cotidiano incitava ao caos. 

Seguindo sempre o tradicionalismo, através dos ensinamentos alheios, principalmente de nossos pais, aprendíamos a encorajar preconceitos, a nos individualizar, a querer sempre mais para nós mesmos, a buscar somente os atalhos para qualquer questão antes de enfrentá-la, a derrotar os “inimigos” através de guerras, porque eles eram pessoas diferentes, que julgávamos inferiores e más, entre outras coisas Assim, no decorrer dos anos, aprendíamos a ignorar valores que nos tornariam mais humanos.

Os níveis de escolaridade estavam subindo, apesar da precariedade social dificultar e atrasar a evolução. Com isso, a sociedade começou a duvidar dos três poderes (executivo, legislativo e judiciário), da fé e das doutrinas tradicionalistas. Corrigimos os nossos valores e começamos a estudar estratégias para manter a paz mundial.

Não sei explicar direito como tudo aconteceu. Sei apenas que evoluímos. Até que ponto?

Pouso o jornal sobre a mesa do restaurante, quando um Neowork vem me atender. Estamos agora no ano de 2055. Meu nome é Joseph Andersson, tenho sessenta e oito anos de idade e moro nos Estados Unidos da América.

A ciência evoluiu espantosamente. Além do mais, foi ela que causou o fim da Sociedade Antiga, por meio de uma ampla reestruturação social, política e econômica chamada de Neoway.

O mais importante nesse processo é que cientistas de todo o planeta se uniram e construíram os androides Neowork. Eles executam quase todos os trabalhos que antes eram destinados à população. No contexto atual, poucos seres humanos exercem alguma atividade. Quando o fazem, executam tarefas que desde os primórdios são consideradas exclusivas do homem. Seus empregos são relativos à educação, à saúde, às artes, aos esportes, aos mistérios... Contudo, no comércio e na indústria somente Neoworks são encontrados.

Vivemos num regime parlamentar. Os cientistas controlam o governo, as indústrias, o comércio e a agricultura. O lucro é distribuído igualmente para todos. Cada cidadão, a partir dos dezoito anos, recebe a sua mensalidade.

A mensalidade seria aquilo que chamávamos antigamente de salário. No entanto, agora recebemos uma espécie de mesada. Não temos que trocá-la por nada. Apenas a recebemos porque estamos vivos e necessitamos de recursos.

A escola permaneceu praticamente igual, embora tenha recebido importantes atualizações curriculares e metodológicas. Além disso, agora não há mais criança que não estude. Todos devem seguir os estudos até concluírem alguma formação superiora, para que possam receber a mensalidade até o fim da vida.

Essa é nossa única obrigação. Precisamos estudar até nos aprofundarmos em uma área do conhecimento escolhida por nós mesmos e, através dos conhecimentos adquiridos nessa fase, começamos a elaborar pesquisas que melhorem a qualidade de vida da sociedade e equilibrem a existência dos seres humanos com a do meio ambiente.

Em relação à saúde das pessoas... é um detalhe até engraçado. Eu sou da época em que todos eram conscientes sobre os riscos do excesso e da escassez. Todos tinham conhecimento a esse respeito, mas continuavam se excedendo ou, por medo de ultrapassar o ideal, tornavam a vida mais light. Hoje, com muito tempo de sobra, passamos a maior parte do dia cuidando do corpo e da mente. Os centros esportivos, as academias, as bibliotecas, os centros de pesquisa, as universidades, ou seja, tudo o que tem a ver com a evolução da raça humana e que melhore a motivação das pessoas é gratuito e de propriedade do governo.

Perdemos a fé, todavia mantivemos o nosso lado espiritual, cada um crendo naquilo que lhe faz bem ou naquilo que lhe faz compreender melhor a vida. Através desse novo estilo de vida, os religiosos viraram indivíduos livres e as instituições religiosas perderam seu poder, assim como os partidos políticos.

Após termos nos livrado de todas as doutrinas e de qualquer forma de submissão, foi decretado o primeiro Dia da Consciência, onde se deu o fim da antiga alienação. Essa data é comemorada no dia 29 de fevereiro, em todo o ano bissexto. Então, são feitas palestras e seminários globais, para que todo o mundo celebre e entenda com clareza a importância desse feriado.
***


Que nos seja permitido sonhar com um mundo melhor, onde não existam preconceitos e angústias, e os seres humanos tenham a possibilidade de apenas viver, em estado de plena harmonia e evolução.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Cotidiano

Escrevi esta narrativa em 2005, logo que ingressei no curso de Letras. Naquele momento, estava participando de uma oficina de produção textual. E o texto em questão foi uma das atividades propostas na oficina.

Cotidiano

Seu nome era Pedro, tinha 16 anos, pais “normais”, uma irmã de 14 anos chamada Leila e um pesadelo imaginário.

Todo dia, ele acordava, dava bom dia ao seu pai, à sua mãe, às paredes, mas não à sua irmã. Seguia rumo ao banheiro, onde retirava toda a sujeira que ele obtivera à noite. Quando acabava esse processo, descia as escadas de sua humilde casa de classe média alta e infeliz, para usufruir do banquete matinal que sua eficiente empregada lhes trazia.

O pai de Pedro, Dr. Vítor, era um homem em seus 45 anos, aparência apessoada, face firme e conservadora, advogado meia-boca e mal-pago. Sua mãe, Dona Célia, era uma dona de casa faz de conta, falsa e sorridente. Em seus 42 anos de vida, ela serviu apenas como modelo social de um instrumento alienável.

A irmã do nosso jovem, Leila, 14 anos, como já havíamos referenciado, tem uma curta e infeliz história. Até esta idade que lhe cai hoje sobre os ombros, foi uma legítima garota Barbie, que tudo pede, tudo ganha e nunca fica por fora de nenhuma novidade lançada no mundo do Shopping Center.  

O pesadelo de Pedro! Ele via sua vida passar, as garotas passarem, passando sobre elas, ascendendo em seu trono, mas ele não via alegria, naquele triste colégio particular em que cursava o Ensino Médio. Todas os dias, quando saía da escola sem esperar a sua irmã, encontrava dois rapazes negros sentados na calçada, que fumavam maconha e lhe miravam a vida. Ele simplesmente seguia, tomando o seu caminho real, direto para o seu castelo, sem refletir sobre o que havia sentido: o medo!

Então, dedurou os dois marginais para o Dr. Vítor: “Pai, tem dois negrões que ficam me encarando todos os dias na saída da escola!”

No outro dia, logo pela manhã, Pedro esbanjava um sorriso ardente, cumprimentou a todos, inclusive sua irmã. No fim da aula, seu pai o esperava. Pediu que lhe apontasse os garotos que o “ameaçavam”. Dr. Vítor foi ao encontro dos garotos, rufando palavras de desprezo, no intuito de alarmá-los sobre o seu poder. Os dois “secaram” friamente o senhor que ali estava e foram embora, enfurecidos e chapados. 

Último dia. Pedro repetiu o brilho anterior, com um sentimento de vitória. Abraçou o seu pai pela última vez...

Na volta da escola, encontrou os mesmos indivíduos. Eles se levantaram, indo furiosos na direção dele, gritando:

– Tu é muito baitola mano! Seu playboy veadinho! A gente não ia te fazer nada!

Dizendo isso, deram um chute na coxa de Pedro, que se encolheu chorando de medo. Ele, então, transformou toda a sua fraqueza em ódio social, pegando a faquinha de aço inox que passara a guardar na mochila por medida de “segurança”. Correu em direção aos alvos, no mesmo instante em que um deles se virava com um canivete. Pedro, que estava em alta velocidade, não conseguiu controlar seus movimentos e, num reflexo súbito, viu sua barriga sangrando, seu olhar embaralhando, sua vida, estacionando... Os dois garotos correram assustados, a polícia não apareceu, os jornais divulgaram, a sociedade se alienou e a família clamou por justiça. Cinco dias após a morte do jovem, duas viaturas prenderam os suspeitos. Fez-se justiça, fez-se o social, fez-se o poder.