Capítulo 1
Nika era uma pequena guerreira. Não porque gostava de violência e de brutalidade. Muito pelo contrário! Mas porque lutava incontáveis batalhas, neste finito campo de batalhas chamado vida.
Ela não era rica, não era loira como o mais inebriante ouro, nem possuía olhos claros como o céu em dias bons. Não se parecia em nada com as princesas mirins dos contos de fadas. Sua aparência estava mais para a das bruxas. E sua sorte também. Apesar disso, ela era linda! Pois era uma criança. E todas as crianças são lindas – mesmo aquelas com aparências desvalorizadas no mercado editorial.
Nika não morava em um castelo. Nem em um reino encantado. Ela morava em uma casa de brinquedo. Não porque sua casa era divertida nem nada assim. É porque era quase inacreditável que alguém pudesse morar em uma construção tão pequena, feita de restos de entulhos, desagradável nas cores, desagradável no desenho, desagradável no conforto (ou melhor, na falta dele), desagradável no espaço, desagradável na temperatura. Parecia uma brincadeira (ou piada) de mau gosto. E essa humilde (ou humilhante) residência ficava em um humilde (ou humilhante) local, nem um pouco mais agradável do que a sua casinha de brinquedo.
É aí que começavam os poderes secretos de Nika. Podiam ser chamados de poderes porque ajudavam-na a enfrentar as suas batalhas diárias. E podiam ser chamados de secretos porque somente ela sabia que os tinha. Eles funcionavam no seu âmago. Além disso, Nika não era dada a revelar os seus segredos. Pelo menos isso ela conseguia guardar para ela, somente ela!
O primeiro poder de Nika era saber suportar. Pois sabia como nenhuma outra menina de sua idade suportar o desgosto que aquele lugar trazia para a sua família. Ela também era capaz de suportar a ausência de um pai, a falta de comida e a inexistência de carinho dentro daquelas gélidas fronteiras.
A família de Nika era composta por sua mãe e três meios-irmãos. Meios-irmãos porque Nika era filha de um pai diferente dos outros três. Primeiro, sua mãe teve Nika. Mas, depois que seu pai fora vítima de uma bala perdida (se é que existam balas certeiras, já que atirar em alguém sempre é um ato perdido), surgiu um padrasto na vida de Nika. E, com ele, um após o outro, irmãos menores: duas meninas e um menino, que havia nascido no intervalo entre uma menina e outra.
O padrasto de Nika, mais um dentre tantos Josés, passava o dia fazendo bicos, com os bicos de várias garrafas de bebidas na sua boquinha de cemitério. Então, como a mãe de Nika, Dona Dolores, trabalhava como empregada doméstica numa moradia sim de contos de fadas, cabia à filha tentar cuidar dos três irmãos. E assim apresentamos mais um poder de Nika, o poder da superação. Pois qualquer criança que é obrigada a cuidar de outras crianças precisa se superar... e muito! Sem contar a superação da perda do pai, da inutilidade do padrasto e de outras novidades detestáveis na vida de Nika.
Quando não tinha que cuidar dos irmãos, Nika ia à escola. Isto é, na verdade ela ia à escola bem menos vezes do que deveria. E, nas vezes em que ia, não lhe ensinavam nada que lhe ajudasse a controlar e a acalmar os irmãos; nem a lidar com o medo de seu padrasto, nos momentos em que ele, bem bêbado, lhe encostava de maneira asquerosa; nem a sair de maneira rápida daquele lugar triste e opressor. Por isso, às vezes ela preferia não ir, mesmo que não precisasse cuidar dos menores. Nessas ocasiões, Nika ia até a cidade. A cidade de verdade! Aos lugares lembrados da cidade, não aos esquecidos! Àqueles locais onde há pessoas bonitas, e lojas bonitas, e ruas bonitas; e tudo isso lhe dava um nó na garganta. Está certo que, quando não ia à escola sem a permissão da mãe, esta ficava braba. (“Braba” mesmo, não “brava”. Porque tornar-se violento não pode ser, de forma alguma, sinônimo de “valentia”.) E, quando isso acontecia, Nika precisava demonstrar outra faceta do poder de suportar, o poder de suportar a dor. Mas valia a pena o sofrimento, pois só assim ela sabia que existia uma vida diferente, quem sabe melhor, onde o dinheiro dá um único poder às pessoas, o poder da compra, tão indispensável em nossa sociedade. E, para aqueles que não têm dinheiro, como Nika, o poder da compra parece ser o mais potente de todos. Nika imaginava que ele tornaria tudo agradável, tudo fácil; traria sorrisos e gargalhadas.
A esperança de dias melhores proporcionava um outro poder para Nika, o poder de seguir em frente. Pois nas novelas e nos filmes que passavam na TV ela via meninas se tornarem mulheres, e mulheres se tornarem esposas e mães. É claro que ela via tudo isso ao redor de sua casa de brinquedo também! Não necessariamente naquela ordem. Às vezes meninas se tornavam mães cedo demais. E nem sempre mães se tornavam esposas. É que na TV as mulheres se casavam com homens ricos, que transformavam meninas como Nika em princesas de verdade. E com ela seria assim, com certeza! Não iria se casar com homens como o seu padrasto, ou que tivessem um destino triste como o do seu pai. Com certeza aconteceria o melhor para ela! É para isso que ela rezava. E a reza lhe dava outro poder, a fé. A fé em si mesma, a fé no amanhã (que toda criança tem).
Desse modo caminhou a infância de Nika, com sonhos e poderes, mas também, em algumas situações, com pesadelos e impotência.
Capítulo 2
Os anos voaram e com eles surgiu um novo capítulo na vida de Nika. Ela se tornou moça depois de enfrentar milhares de indescritíveis batalhas e de aprender a usar uma diversidade de outros poderes diferentes. Esses poderes ensinaram muitas coisas a ela. Coisas que nem a escola nem ninguém poderiam tê-la ensinado. Coisas que se aprende sozinha! Nesse tempo, aprendeu a sobreviver. Aprendeu o poder de esquecer alguns dos acontecimentos ruins, o poder de ignorar batalhas pequenas demais e, infelizmente, como faz parte da existência de qualquer pessoa, o poder de se esquivar, para fugir de situações difíceis, embaraçosas ou perigosas.
Naquela época, Nika começara a trabalhar. E, como se dedicava, Nika cresceu no emprego. No hipermercado em que trabalhava, passara de empacotadora a caixa em alguns meses. Depois, com a espera de mais alguns anos, tornou-se fiscal.
No hipermercado, Nika havia conhecido Davi. Davi, que fazia de tudo um pouco dentro daquele castelo de consumo, não era bem aquele homem rico com quem Nika sonhara. Contudo, era bem diferente de seu padrasto. E, por compartilhar da fé no amanhã de Nika, também não teria o mesmo destino que seu pai.
Os dois iniciaram um longo e suado relacionamento. Com os poderes que ambos obtiveram ainda na infância, resistiriam a tudo. Nada, exatamente nada, seria problema para aqueles dois! Eles já tinham tudo planejado. Trabalhariam muito, economizariam mais ainda e, só depois de conseguir alugar um apartamento nos bons lugares da cidade, aqueles com lojas e pessoas bonitas, eles se casariam.
Porém, e nesta vida há sempre “poréns”, num dia qualquer, quando Davi estava à procura do presente perfeito para oferecer a Nika pelo aniversário de namoro dos dois, alguns policiais confundiram o rapaz com outro, mais um dos vários autores de pequenos delitos. Davi não reagira à abordagem da maneira que era esperada pelos homens fardados, e, numa tentativa de fuga desesperada, o tiro saiu pela culatra. E a bala acertou Davi.
Nika, por sua vez, perdeu todos os seus poderes. E tornou-se, depois de cascatas de lágrimas, uma pessoa comum. Trabalhava pelo pão de cada dia, sem pensar em nada além. Colocou apenas um único objetivo para a sua vida: se não tivesse mais ninguém em sua vida, diminuiria bastante a quantia de desgostos. Não teria mais que tomar conta de ninguém, nem teria com quem se decepcionar. Então, só seguiria só.
Após anos, solitária na lida, conseguiu alugar uma quitinete próxima ao hipermercado. Mobiliou-a como conseguiu, o que, de qualquer maneira, ficou bem melhor do que a antiga casa de brinquedo que dividia com a sua família.
Assim, prosseguia a sua organizada vida até que o destino lhe surpreendeu. Um novo vizinho, um jovem vizinho, havia aparecido no prédio em que Nika morava. E, desde o primeiro momento em que se encontraram, ocorreu um sincero sorriso em ambos, por dentro e por fora, um como consequência do outro. Daquele segundo em diante os dois perceberam que a vida entre os dois seria melhor. Apenas sabiam, sem saber como!
Nos momentos em que um universo se deparava com o outro pelos corredores, Natanael conversava com Nika. E a cada dia que se passava ela tinha mais certeza de que o rapaz era um presente do destino a ela, que já havia passado por tanta coisa, inclusive pela perda de seus poderes.
Natanael a redimiu. Natanael redimiu a sua vida. E a partir de então (quase) tudo deu certo – porque dar tudo certo é milagre, e isso raramente acontece na vida de pessoas comuns, mesmo que elas sejam extremamente poderosas, como Nika, Natanael, Davi e tantos outros heróis anônimos, que se salvam e nos salvam todos os dias.