Esta foi mais uma boa ideia que tive para um possível romance, mas que, por conta da minha falta de paciência, acabou se tornando uma pequena narrativa, não tão interessante quanto surgia em minha mente:
Catando Letrinhas
01- O encontro
Amanhecia. O professor levou o lixo para fora. Do outro lado da rua, dormia na calçada um mendigo.
– Não sou tão pobre quanto o mendigo, mas sinto-me tão miserável quanto ele. – pensou o professor – Esse mendigo pode não ter tido qualquer oportunidade. Eu, por outro lado, poderia ter escolhido outra coisa. E escolhi a licenciatura, para viver uma vida de agruras.
02- O desprezo
Nem bem se virara, o professor ouviu uma voz:
– Me ajuda, meu! – emitia, com bastante dificuldade, o mendigo.
Atravessando a rua, ele chegou até o seu companheiro de miséria. Auxiliou-o a se levantar e esse lhe falou:
– Valeu, meu chapa! – exalando um odor asqueroso de cachaça – Se puder me ver uns trocadinhos, agradeço também.
– Trocadinhos não tenho nem para mim! – vociferou o professor – Agora segue o teu rumo, cara!
– O que tu faz da vida que está tão quebrado, irmão? – questionou o andarilho.
– Sou uma droga de um professor e nado contra correnteza todo o santo dia, num país em que a minha classe é tratada como penitente, como inimiga dessa ignorância tão querida pelos poderosos e pela mídia. – explicou o outro.
– Eu já fui como você... – lançou o mendigo.
– Um professor??? – indagou, surpreso.
– Não, um otário preocupado! – riu o andarilho.
– Saia já daqui! – ordenou o professor, com sua falsa autoridade.
E cada um foi para um lado, com a mente recheada de pensamentos e o coração, de amargura.
03- O professor
Quando pequeno, colecionava mapas e atlas. Não deixava de acompanhar uma Copa do Mundo de Futebol ou uma edição das Olimpíadas. Admirava as diferenças étnicas, culturais, raciais – só não entendia muito bem as disparidades sociais e econômicas.
Ao final do Ensino Médio, após alguns testes vocacionais, concluiu: seria um professor de Geografia. Ou melhor, seria O professor de Geografia!!!
Passou no vestibular, frequentou a maioria das aulas, fez todos os trabalhos, resolveu todas as provas, elaborou um Trabalho de Conclusão de Curso e participou de inúmeros eventos, sempre muito elogiado, em qualquer circunstância.
Depois de formado, apresentou-se ao mundo cheio de recomendações e de moral. Conseguiu um emprego temporário, até ser aprovado em um concorrido concurso estadual para uma vaga de professor. Entrou em completo êxtase!
Anos após, viu que a sala de aula não era bem assim. Em meio à burocracia inútil, aos alunos mal-educados, à falta de comprometimento de alguns colegas e ao ambiente degradante das escolas públicas, sobrava pouco tempo e pouco ânimo para tentar ensinar alguma coisa.
Solteiro, com a mesada que recebia, conseguia pagar o aluguel da quitinete, as controladíssimas contas, a comida de baixa qualidade, a prestação do Fusca e as despesas de algumas noitadas em que afogava a solidão. Enfim, uma vida digna para alguém que estuda tanto e exerce uma profissão tão importante para o desenvolvimento das pessoas, não é mesmo?
04- O mendigo
Quem pode descrever um homem invisível?
05- A biblioteca
Um novo dia amanhecia. O professor levou o lixo para fora. Do outro lado da rua, olhava para ele o mendigo.
– Bom dia! – disse-lhe o andarilho – Um minutinho, faz favor!?
– Bom dia. O que tu quer? – respondeu o outro.
– É que, revirando as sacolinhas de lixo, eu tenho achado um bocado de livros. Faz anos já! Tenho pilhas e mais pilhas no meu barraco. Aliás, não durmo na rua não. Só quando exagero na bebida. Construí um teto numa invasão.
– E o que eu posso fazer por ti? – perguntou o educador, um tanto perplexo com a situação.
– Eu tenho esses livros, acho até que dá para montar uma coleção, mas infelizmente, não há o que fazer com eles.
– Não estou interessado neles! No meu apartamento quase não caibo eu! – assegurou o professor.
-- Não quero dar nada a ninguém, não! É que eu não sei ler... – afirmou o mendigo, envergonhado.
– Bah! Perdão, então. – pediu o interlocutor, mais envergonhado ainda.
Após um pequeno instante:
– Já que tu é professor, não poderia me ensinar? – esperançoso, tentou o farrapo.
– Sou professor de Geografia, não sou alfabetizador! – sentenciou.
– Garanto que tu consegue. O que tu sabe fazer, sabe passar adiante. – motivou o andarilho.
– Sendo assim, podemos fazer uma experiência. Eu não tenho nada a perder mesmo... Mas só se tu vier sóbrio! Gente bêbada não aprende nada. Sei disso porque tenho a “honra” de dar aulas para adolescentes que vêm embriagados à escola. – denunciou o mestre.
– Está certo! Combinado! Quando começamos? – indagou, empolgado, o mendigo.
– No próximo sábado, nesse mesmo horário. – marcou o professor.
06- As aulas
Amanhecia, chuvoso, o sábado. O professor levou o lixo para fora. Da calçada em frente ao prédio, olhava para ele o mendigo.
– Bom dia! – disse-lhe o andarilho.
– Bom dia. – retrucou o professor – Pode entrar. – fazendo um gesto para que o outro se encaminhasse prédio adentro, perante os olhares curiosos e reprovadores dos vizinhos transeuntes.
No apartamento, o educador encaminhou o mendigo até o banheiro, para que tomasse banho. Deu-lhe roupas surradas (mas limpas) e ofereceu-lhe um café da manhã simples (mas suficiente).
As aulas começaram e o mendigo teve muita dificuldade para aprender algo. Já tinha a idade avançada, havia bebido vários litros ao longo da vida e não possuía qualquer noção de letramento. O que ajudava era a vontade que nunca lhe faltou.
Assim se sucederam os fins de semana, até que o mendigo soubesse o básico para conseguir desfrutar de seus livros.
07- O resultado
Depois da última aula, o professor quis conhecer os livros do amigo. Este, reticente, levou-o até o seu barraco.
A peça em que o mendigo morava era indescritível; digna dos mais tristes cenários que se testemunha pelo Brasil. Os livros, inúmeros livros, eram pessimamente conservados, porém, legíveis. E interessantíssimos!
Foi aí que surgiu uma ideia ao professor: no mês seguinte teriam início as suas férias. E se eles construíssem uma biblioteca para o pessoal da invasão? Afinal, os benefícios do conhecimento e da cultura deveriam ser proporcionados a todas as pessoas.
Desconfiado, o andarilho aceitou. E, durante o período descrito, os dois, com a ajuda de alguns companheiros, melhoraram a casa do mendigo e construíram, com materiais descartados de construções e demolições, uma pequena sala destinada à biblioteca. Ali, por fim, organizaram as obras literárias (assim como a vida de ambos).
08- O recomeço
A vida seguiu.
O mendigo parou de beber, começou a trabalhar em uma cooperativa de reciclagem e deu início a um relacionamento com uma colega de labuta.
A biblioteca estava em pleno funcionamento e o seu principal leitor era o próprio andarilho, cujo cuidado com o recinto era comovente.
O professor, anteriormente em depressão, passou a valorizar a sua profissão, tornando-se, novamente, um educador motivado. Os alunos, consequentemente, começaram a adorar o professor de Geografia! “Ele dá aulas divertidas, interessantes e se importa com a gente”, explicavam os estudantes.
Os dois, juntamente com uma pequena quantia de senhoras voluntárias, mantinham e cuidavam da continuidade do seu projeto. Ele simbolizava aquilo que eles conseguiram fazer de melhor durante as suas vidas. Ali estavam os sonhos e a motivação de ambos. Ali estava a esperança de outros tantos.