Capítulo 1 – 07h25min
Os últimos estudantes estavam chegando à única escola pública de Ensino Fundamental da comunidade rural Paraíso Bucólico. As aulas começariam daqui a cinco minutos para os setenta e oito alunos que estavam matriculados no turno matinal do retirado educandário, cuja localização ficava próxima somente das propriedades pertencentes às famílias da localidade. E essa proximidade era relativa, tendo em vista que ninguém morava a pelo menos quinze minutos de caminhada da sua moradia até o local onde estudava.
Naquela manhã, quem recebia as crianças e os adolescentes era a vice-diretora, Helena de Assis, cujo comportamento deixava qualquer indivíduo bem acolhido e à vontade. O restante da equipe diretiva era composto pela diretora Agatha Gianinni e pela coordenadora Adrienne Funke. Enquanto aquela cuidava da burocracia em seu escritório, ou coordenava setores diversos, como limpeza, manutenção, alimentação, esta organizava os estudantes em filas, enquanto aguardavam com ansiedade os alvoroçados mestres, os quais corriam contra o tempo na atribulada e misteriosa Sala dos Professores.
Era uma manhã normal, nem um pouco diferente de outra qualquer. Todos estavam seguindo as suas rotinas, desempenhando o seu papel de acordo com os mecanismos que fazem o mundo girar.
Os movimentos de entrada e de saída no edifício eram constantes. Crianças gritavam, brincavam um com o outro, proferiam palavrões e provocações entre si, gerando inquietação na Prof.ª Adrienne e no “tio do recreio” Itamar, um senhorzinho simpático, do qual todos gostavam mas ninguém respeitava. O corpo docente da Escola Saberes do Campo abria e fechava armários, organizava materiais e conversava a respeito de mais um dia de trabalho nas suas “adoráveis” turmas. E as salas de aula, silenciosas até então, logo seriam preenchidas com uma barulhenta dose de vida.
Capítulo 2 – 8h30min
A adolescente Giselle estava furiosa consigo mesma. Como é que tinha permitido que o seu celular ficasse sem carga? O aparelho “morreu” durante a madrugada e, pela manhã, dormia tanto quanto a sua refém.
Assim que a menina acordou, às 8h03min, levou um tremendo susto, incrementado pela lembrança da prova de Matemática que a turma dela, do 9º ano, resolveria naquele dia. As avaliações da Prof.ª Matilde já eram absurdas, de tão difíceis. Chegando atrasada à escola, com menos tempo para resolver o teste e a sua concentração avariada, certamente Giselle teria um obstáculo gigantesco diante de si.
Porém, agora essas questões só poderiam ser remediadas. Já iniciado o segundo período de aula, último de Matemática, a estudante encontraria os primeiros desafios, que eram convencer quem a recebesse no colégio a permitir a sua entrada na sala de aula e, uma vez lá dentro, persuadir a professora a deixar que ela respondesse ao teste.
Estava diante da temida porta. No momento, precisaria criar coragem para enfrentar tudo aquilo que surgisse em seu caminho.
Capítulo 3 – 8h35min
A escola estava mais quieta do que o costume. Parecia até que não havia uma viva alma lá dentro. Giselle dirigiu-se à direção, no entanto não havia ninguém por lá. Será que estavam em alguma reunião? Vai ver, todos se encontravam no auditório para alguma palestra de última hora. Podia ser, pois não era tão incomum o surgimento de compromissos repentinos nas escolas. Desse modo, seria bem melhor, porque talvez quisesse dizer que a avaliação de Matemática tinha sido adiada. A descuidada aluna torcia muito para que isso se concretizasse.
Em seguida, sem fazer muito alarde, ela passou pela secretaria, onde também não viu ninguém. Provavelmente a secretária Dorotilde estivesse junto dos demais na palestra, ou procurando documentos armazenados nos arquivos que ficavam na salinha anexa. Sendo assim, agradecendo pela sua inesperada sorte, moveu-se para o corredor onde estavam situadas as salas de aula. A primeira da fila já era a dela.
A passos lentos, Giselle prosseguiu em direção à turma 91, estranhando que a porta estivesse aberta e que não houvesse barulho algum. Será que tinham ido ao auditório sem trancar a porta da sala? Será que a Prof.ª Matilde não havia liberado os colegas para que assistissem à palestra, e eles estivessem mesmo fazendo a prova?
No entanto, assim que chegou diante da entrada da sala 06 da Escola Saberes do Campo, a garota deparou-se com um cenário completamente inesperado. Por mais que detestasse a professora de Matemática, nunca imaginara um final tão atroz para a ranzinza educadora: Matilde estava deitada bem perto da escrivaninha utilizada pelos professores, numa posição indescritível, com a cabeça literalmente estourada, com uma considerável poça de sangue ao seu redor – sangue este que se notava respingado por todo o canto. O pavor da menina foi tamanho que o grito ficou engasgado no seu âmago, perceptível somente em sua face transformada em uma estranha careta de terror.
Então, arranjando coragem não se sabe de onde, Giselle adentrou um pouco mais pelo umbral, encontrando uma tragédia ainda maior. Todos os seus companheiros de 9º ano tinham sofrido um destino similar ao da professora, com pequenas alterações: apresentavam ferimentos em diversos outros pontos do corpo e o sangue em que estavam inundados formava figuras distintas. O cheiro dentro do recinto era forte. Era um misto de sangue, de medo, de morte, mas também de algo diferente.
Sem pensar duas vezes, a estudante correu para fora do local, verificando nas outras salas que as demais crianças, adolescentes e professores apresentavam a mesma situação, típica dos piores pesadelos. Testemunhou, apesar disso, algo inimaginável na última sala de aula: na turma do 5º ano, estavam a professora, os alunos e a equipe da direção inteira, todos violentamente mortos. Ao ver um material espalhado pelo chão, constatou a razão de as diretoras estarem ali. Lembrou-se de que, naquele dia, os estudantes de toda a escola receberiam novos livros literários. E, provavelmente, a Prof.ª Agatha havia decidido começar a distribuição pelos menores.
Portanto, percebendo que não havia mais nada a fazer naquele lugar, Giselle saiu desesperada rumo à saída da escola. E, encontrando-se no saguão, ou ligaria para a polícia, ou cairia fora de uma vez por todas.
Contudo, no momento em que estava prestes a chegar ao final do corredor, um vulto encapuzado e mascarado surgiu diante dela, armado com um afiadíssimo cutelo e uma ameaçadora arma de fogo. Ou seja, todos estavam mortos, entretanto o assassino ainda estava lá. Logo, tudo devia ter acabado há pouco tempo. Quem sabe esse monstro já estivesse até indo embora, quando ouviu a chegada da menina, o que o fez ansiar por mais uma morte.
Capítulo 4 – 9h13min
– Atrasada para a morte, hein, mocinha!? – exclamou uma voz feminina, abafada pela máscara.
Nisso, o bizarro personagem abaixou o capuz, arrancou o objeto de disfarce do rosto, e, de repente, Giselle reconheceu ali as faces de Olympia, uma senhora robusta de meia idade que trabalha como merendeira na escola.
– Dona Olympia, o que a senhora está fazendo? – perguntou a garota, não mais confusa do que apavorada.
– Quer mesmo saber? Acho que eu ainda tenho um tempo para falar. Vai ser bom pra mim. Igual, depois você vai se juntar aos seus coleguinhas mal-educados.
Então, relaxou um pouco a postura do corpo e começou a discursar:
– Exatamente há quinze anos, o meu filho Thales estudava nesta escola aqui, no 7º ano. Certo dia, eles estavam na aula de Educação Física, lá no campinho de terra. O Prof. Valter, responsável pela disciplina na época, deixou-os jogando futebol e veio conversar com a diretora Carina, para combinar com ela os detalhes sobre um dia no qual não poderia vir trabalhar. Nesse meio tempo, o meu querido filho, que tinha asma, teve um ataque. Só que os colegas, imaturos e irresponsáveis para tomar qualquer atitude, num primeiro momento, ficaram olhando paralisados o Thales passar mal. Após alguns minutos, deram início a procedimentos inúteis, e só bem depois é que alguém pensou em chamar algum adulto. Mas, quando esse alguém retornou com os adultos, já era tarde. Qualquer socorro teria sido em vão.
Enquanto Olympia contava o seu triste relato, Giselle encontrou forças para ir se aproximando dela, carregando uma sincera comoção em suas belas e jovens feições. Afinal, ela nunca tinha imaginado que uma história tão trágica estivesse presente na história daquela escola. Ninguém nunca tinha comentado a respeito disso.
A auxiliar de cozinha continuou o seu depoimento:
– Todos me disseram que lamentavam profundamente o ocorrido, pediram perdão pela negligência e, por fim, afirmaram com convicção que, aos poucos, a dor do luto passaria. E, também, que a grave asma com a qual Thales sofria sempre havia trazido o risco de provocar algo assim no menino.
Contudo, a dor não passou. A cada ano letivo que terminava, outro começava. Olympia via aqueles estudantes, tão jovens, tão alegres, tão despreparados, tão irresponsáveis. E recordava-se do seu filho, tão frágil, tão doce, tão sozinho, tão dedicado. Thales não tinha amigos. Ou melhor, seus melhores amigos eram os seus professores, dos quais sugava todo o conhecimento que pudesse. Queria um próspero futuro para si mesmo. Todavia, ainda mais, queria um próspero futuro para sua amada mãe, presa naquele fim de mundo, naquela profissão que ele não admirava. Desejava, com uma vontade avassaladora, sair daquele buraco e levar a sua mãe junto, para um lugar bem localizado, onde as coisas, as pessoas e as oportunidades acontecem.
Capítulo 5 – 9h40min
Sendo assim, quando a tragédia estava prestes a completar quinze anos, os tristes sentimentos e os maus pensamentos dentro de Olympia tornaram-se insuportáveis. E ela pensou: “Que os pais de hoje sintam a mesma tristeza arrasadora que eu sinto! Quero trazer todos para o meu inferno existencial!”. Então, comprou uma competente e imponente arma de fogo junto aos intermediários de uma facção criminosa dentre as muitas que existem hoje em qualquer cidade, seja ela imensa ou minúscula. Adquiriu, além disso, um sonífero poderoso, o qual, justamente naquele dia, havia depositado no café que os estudantes, os professores e os funcionários tomavam todo o início de manhã. Assim, não teriam como fugir nem reagir.
E fez o que fez, tendo a ajuda do destino, cujo timing foi perfeito. Todos puderam se dirigir para as salas de aula, inclusive a equipe diretiva. O resto tinha sido fácil. Era só mirar em qualquer ponto dos corpos inertes e acertá-los como acertava os pedaços de carne que cortava com o mesmo cutelo que usara. A outra arma estaria reservada para possíveis eventualidades.
Antes que a enlouquecida senhora concluísse o seu desabafo, Giselle, de posse de um canivete suíço que ganhara do pai e que sempre carregava na mochila para qualquer acaso, conseguiu se aproximar o suficiente dela e a acertou com o pequeno objeto cortante bem no olho esquerdo. Olympia, surpresa e imersa em dor, ficou completamente vulnerável e indefesa. Nisso, a adolescente correu em direção à porta de saída da escola.
Capítulo 6 – 10h02min
Quando estava quase diante do mundo exterior, um outro vulto apareceu de repente. Mas essa aparição não se materializou. Era a presença fantasmagórica de um menino, cujo rosto lembrava demais o de Olympia. Era Thales, sem dúvida. Essa visão permaneceu parada diante do limiar da instituição, como se tivesse o objetivo de segurar Giselle ali.
Estática, a garota ouviu um estrondo e sentiu uma dor lancinante nas costas. E, exatamente de costas, caiu no chão. Antes de se apagar de vez, escutou ainda um outro estouro e o barulho de um segundo corpo despencando ao seu lado.
Agora sim, não havia qualquer viva alma naquela edificação.
***
Quem chegasse na Saberes do Campo por primeiro, assim que abrisse a porta, encontraria os cadáveres da estudante Giselle, assassinada com uma pancada de arma branca nas costas, e do zelador e auxiliar de disciplina Itamar, de quem a vida fora ceifada com um tiro de uma potente arma de fogo.
Além disso, quem percorresse os demais ambientes da escola, enxergaria horrorizado estudantes, professores e funcionários mortos, incluindo as três componentes da equipe diretiva. Só restariam os enigmas a respeito de quem havia executado atos tão cruéis e do paradeiro das duas auxiliares de cozinha, responsáveis pela alimentação daqueles corpos que já não ingeriam mais nada, e das duas auxiliares de limpeza, responsáveis pelo asseio daqueles espaços dos quais ninguém mais conseguiria retirar a sujeira.
Capítulo 7 – 12h33min
Dorotilde acordou atordoada. Pelo que podia perceber, estava caída na salinha dos arquivos. Tudo o que lembrava era de ter tido um sono profundo e repentino.
Levantou-se com alguma dificuldade. Sentiu um odor opressor no ar, o que não a ajudou a superar a náusea que a estava acometendo. Por isso, decidiu sair da escola para respirar ar puro.
Tão logo atravessou a portinhola de acesso à secretaria da escola, deparou-se com os dois conhecidos sem vida despejados na entrada do prédio.
Nossa! O grito de Dorotilde quase ressuscitou aqueles que já estavam em seu descanso eterno. A vantagem disso é que o som escandaloso havia alertado a sua colega de trabalho Olympia, cuja silhueta divisava lá adiante, no corredor, vindo apressadamente ao seu encontro.