Mais um conto de terror:
Maldito gatinho!
– Maldito gatinho! – reclamou Renata, mais uma vez, durante a madrugada. Já eram praticamente duas horas e ela sabia que esta era mais uma noite de sono perdida. Seria outro terrível dia de trabalho, em que se pareceria mais com uma zumbi do que com uma mulher.
Há dias que a professora não podia dormir. Um gato branco miava desesperadamente, todas as noites, na frente da sua casa. O estranho timbre assimilava-se mais ao choro de uma criança do que a um miado. Sem falar do arranhar da porta, que completava a sinfonia infernal e que, certamente, comprometeria bastante o seu frágil orçamento mensal, devido ao reparo a ser solicitado pelo proprietário do imóvel.
Não fazia muito tempo que Renata voltara a dormir bem novamente. Passara meses quase que em claro, por conta das lembranças com o seu filho, falecido há um ano. Ambos sofreram um acidente de carro, quando moravam em uma metrópole. Era um dia útil qualquer. A moça tinha saído do trabalho, juntamente com o seu menino Régis, de sete anos, que estudava na mesma escola em que ela lecionava. Então, na pressa de chegar em casa, a mãe encarnou o seu lado piloto de provas e voou pelo confuso trânsito da grande cidade, até que perdeu o controle do automóvel, o qual capotou várias vezes, esparramando o seu conteúdo na movimentada via, feito um animal esmagado, prestes a virar carniça.
No hospital, entrou em um processo letárgico. Recobrando a lucidez, deu início a uma recuperação lenta e difícil.
Ao retomar a consciência de tudo o que havia acontecido, em um apartamento que já não podia chamar de “lar”, Renata, avulsa há algum tempo de relacionamentos amorosos e familiares, optou por morar no interior, em uma casa bem isolada. A natureza que a ajudasse a exorcizar os seus demônios! Inclusive porque as pessoas só conseguiam aborrecê-la ainda mais.
Fechada em seus problemas, nem cogitava tentar resolver os problemas do gatinho. Quanto mais a criatura miava o seu suplicante lamento, mais Renata pensava no seu filho. E vinha a culpa, vinha o cansaço, vinha o estresse – tudo isso acumulado no seu corpo, na sua mente, no seu coração em frangalhos.
Para garantir a sua sobrevivência, a professora tinha conseguido um contrato em uma escola particular, um emprego bastante instável, que exigia muita concentração e interminável dedicação de sua parte. Sendo assim, tinha que evitar ao máximo novas perturbações – o que não vinha ocorrendo.
Passados alguns meses de trabalho, sabia que não estava agradando a coordenadora pedagógica Marcela. Podia sentir isso! Todas as semanas era chamada à sala desta, onde era interrogada a respeito de suas condições psicológica e emocional. “Os alunos”, relatava Marcela, “perguntam seguidamente o que leva a profe Renata a estar sempre triste e distante”. E essas conversas normalmente se encerravam com promessas vagas de “vou tentar melhorar”.
Até que um dia, sem conseguir mais sustentar a complicada situação, Marcela convocou Renata para uma reunião com a direção da instituição. Na ocasião, as integrantes da equipe diretiva afirmaram que não poderiam mantê-la no corpo docente. Segundo elas, a profissional estava deixando a desejar nos resultados, além do que não tinha procurado uma ajuda mais aprimorada para tentar resolver os seus problemas particulares; não tinha buscado pessoas especializadas, cujos tratamentos e prescrições talvez obtivessem o sucesso esperado.
Ao ouvir esse tipo de coisa, Renata saiu correndo da sala de reuniões. Contudo, antes de partir para casa, passou em um antiquado mercadinho, no qual comprou uma garrafa da bebida alcoólica mais forte e braba que o precário estabelecimento comercial podia oferecer aos seus poucos clientes.
No sofá de sua sala, derrotou o inebriante líquido, juntamente com as lágrimas que teimavam em brotar de seu exausto olhar.
Já era noite. E, como sempre, surgiu o pequeno e alvo animal, emitindo seu incômodo som de forma insuportável. De todas, Renata achava, essa era a oportunidade em que o gato mais se mostrava suplicante e desesperado. A embrutecida mulher, então, agarrou um machado destinado ao corte de lenha e que, por precaução, mantinha dentro da residência. Ela não mais aguentaria aquelas lamúrias do além! Aliás, até culpava o maldito gatinho por sua mais recente desgraça. Por isso, e para descontar a raiva angariada no infeliz dia, abriu a porta, vislumbrou o felino, desferiu um golpe violento com a pesada ferramenta.
E o animalzinho não tiraria nunca mais o seu sono...
Na sequência, despencou sob o sofá mesmo e dormiu. Dormiu como há tempos não dormia – não sem antes expurgar de suas entranhas o líquido diabólico e o nojo causado pela horrível atitude tomada há pouco.
Ao despertar, já na tarde do dia subsequente, sentiu uma sede insaciável. Cambaleante, foi à cozinha em busca de água. E, sob a pia, encontrou o seguinte bilhete: “Mamãe, por que você não abriu a porta para mim? Eu era aquele gatinho, mas não tinha como avisá-la. Perdão, mamãe! E eu também a perdoarei por ter tirado a minha vida mais uma vez.”
Em choque, mais parecendo uma assombração do que um ser vivo, Renata segurou o bilhete bem perto do peito, saiu de casa exatamente como estava, sem nem mesmo notar o sumiço do cadáver do gatinho, e caminhou lentamente. Dirigiu-se até um penhasco que havia ali na redondeza e, de lá, atirou-se, para não mais fazer mal ao seu filho.
Quem sabe, talvez só Deus, poderia ela, dessa forma, unir-se ao garoto, em um local onde ninguém mais é machucado. Ou não. Poderia ser o contrário. Mas agora tudo já estava feito...